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por Roberta Gregoli

"Ameaçador à dominação masculina não são as mulheres rindo dos homens; 
a real ameaça são mulheres rindo com mulheres"
- Nancy Reincke*

Solidariedade feminina em Hollywood
Já escrevi sobre a competição feminina e esse é um assunto que me interessa muito, inclusive num nível pessoal, e, correndo o risco de soar piegas, confesso que as pessoas mais fantásticas, inspiradoras, inteligentes, competentes e carinhosas que conheço são mulheres. Tenho muitos amigos homens também e eles são maravilhosos, mas com certeza devo muito às mulheres da minha vida.

Por isso estranho quando vejo mulheres sendo competitivas comigo ou umas com as outras. Estranho, mas compreendo. A competição feminina não é um mito, porque é empiricamente observada, mas uma construção essencial ao funcionamento do patriarcado. É simples: sem solidariedade não há coletividade, sem coletividade não há mudança. Enquanto as mulheres ficam competindo e brigando umas com as outras, a desigualdade entre mulheres e homens persiste sem grande resistência.

Pink Gang: iradas!
Este excelente texto clama por menos misoginia e mais amor e sororidade, leiam que vale muito a pena. É esse o meu apelo também, e aproveito para sintetizar algumas ideias no sentido de minar o paradigma tradicional, substituindo os sintomas das dinâmicas machistas por atitudes saudáveis e de apoio mútuo. Assim, precisamos de:

inspiração em vez de inveja
solidariedade em vez de rivalidade
empatia e compreensão em vez de culpabilização
colaboração em vez de competição
mais elogios e menos críticas
respeito em vez de imposição

e risada, muita risada, sempre



Ampliem esta lista nos comentários. Precisamos de mais tudo de bom!

* Reincke, Nancy. "Antidote to Dominance: Women's Laughter As Counteraction." The Journal of Popular Culture 24.4 (1991): 27-37, p. 36. Texto completo em inglês aqui.

por Roberta Gregoli

Uma leitora querida nos enviou um vídeo que me inspirou a abordar um assunto no qual venho pensando faz algum tempo: a biologia da evolução. Reproduzo abaixo o vídeo, que serve como ilustração para alguns pontos que quero traçar, mas já adianto que o conteúdo é ofensivo, de mau gosto e traz informações imprecisas:


Eu já havia detectado vários problemas no vídeo, mas para os detalhes científicos que desconheço entrevistei um amigo que faz doutorado na área aqui na Universidade de Oxford. Como ele não fala português, expliquei a tese do vídeo e os principais argumentos mobilizados e a primeira reação dele foi: "Um abastardamento da ciência!".

A partir daí ele foi me apontando as barbaridades imprecisões propostas pelo vídeo, que discuto abaixo, incorporando também a minha interpretação enquanto feminista.


Mito: Os poros nos seios e bunda liberam mais feromônios, por isso os homens gostam mais dessas partes


Primeiro, a atração por seios e bunda está ligada à visão, não ao olfato. Apesar da explicação capenga do 'professor' - que, aliás, acho que diz mais sobre o seu gosto pessoal por sexo oral (e aqui fica o meu único ponto positivo para ele!) - ninguém fica excitado por cheirar um seio, como qualquer assinante da Playboy pode atestar.

Em segundo lugar, nós, feministas, sabemos muito bem que os ideais de beleza são culturalmente construídos e socialmente impostos. Como já vimos, o padrão de beleza na Idade Média era de seios pequenos e testas largas. Como explicar essa mudança de acordo com o argumento do vídeo? Os poros dilatados que liberam feromônio migraram da testa para a bunda?


Mito: Lucy se escondia numa moita e o cheiro de sua genitália atraía parceiros sexuais


Ahn? Numa moita? Ele estava lá pra ver, né? Só pode, porque do punhado de fósseis existentes, não há um único que tenha sido encontrado numa moita ou com qualquer vestígio que possa indicar esse padrão para a cópula.

Marofa de pomba nada!
Igualmente sem embasamento é a história do cheiro da vagina, elegantemente colocada pelo 'professor' como "marofa de pomba". E é este o ponto mais negativo do vídeo, na minha opinião: ele reforça um clichê dos mais toscos (quem nunca ouviu piadas que comparam o cheiro da vagina ao do bacalhau?). A associação entre vagina/mulher e sujeira/impureza é antiquíssima, presente em diversas religiões tradicionais, e essa é uma maneira de atualizá-la para um contexto contemporâneo laico. Parabéns por esse desserviço, 'professor'!


Mito: A migração do canal vaginal criou a família nuclear


O bonobo (Pan paniscus), a espécie mais próxima do ser humano, e a única em que a fêmea tem o canal vaginal na mesma posição que as mulheres, não se organiza em torno da família nuclear. Ponto. Toda a tese da 'aula' vai por água abaixo.

E nem precisamos entrar no detalhe de que não é preciso transar na posição papai-e-mamãe para ser capaz de identificar x parceirx. Ah, e 'papai-e-mamãe' em inglês é missionary position, não father and mother, ok?


Just-so stories


Esse tipo de narrativa sem embasamento científico sólido é chamada na ciência e na filosofia de just-so stories ('foi mais ou menos assim', numa tradução livre) ou falácia ad hoc. Explicações desse tipo concatenam fatos observáveis - A, B, C - e criam uma narrativa (fictícia) que mais ou menos explica como se chegou de A a B a C.

E vale lembrar que a evolução não é um agente inteligente, com uma agenda presciente, sabendo onde quer chegar. Muitas coisas acontecem simplesmente por acaso e tentar encontrar um único fator que explique algo tão complexo como a formação da família nuclear não passa de um disparate.

Fato - hipótese - resultado: Essencialismo biológico


O Gene Egoísta


Mesmo Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta, de 1976, considerado um divisor de águas do campo da biologia da evolução, não escapa do sexismo.

O livro traz um capítulo cujo título, "Batalha dos sexos", já anuncia o contexto no qual o autor enxerga as diferenças sexuais. O capítulo é permeado por linguagem sexista, com o óvulo sendo o "gameta honesto" e o espermatozoide o "gameta explorador" (p. 142*), os homens como sendo 'imprestáveis' ("Males, then, seem to be pretty worthless fellows", p. 143; homem como ser inútil é uma das estratégias de opressão do patriarcado - ao constantemente colocar a mulher no lugar retórico de superior, justifica-se maior cobrança e imposições às mulheres); e é interessante quando ele começa a narrar um cenário fictício em que existem dois sexos, iguais e sem hierarquia, A e B (pp. 300-301), e no final da história acontece, sem querer querendo, que A é o sexo masculino...

Não é o caso de atacar a biologia da evolução em si, mas a frequente falta de embasamento crítico e ético ao se fazer ciência. A ciência não é produzida no vácuo e xs cientistas inevitavelmente trazem sua bagagem cultural e social para suas hipóteses, análises e conclusões. Basta estudar um pouco da história da sexualidade para ver como a ciência já tratou as mulheres de maneira perversa. Não ter consciência e não incluir essa dimensão crítica com relação à própria formação resulta quase certamente na (re)produção de conhecimento preconceituoso.

De fato, sob o selo legitimador da ciência, muitos estereótipos de gênero nocivos são propagados: como o cérebro 'enxerga' homens e mulheres de maneira diferente ou mesmo como mulheres negras são menos atraentes que mulheres de outras etnias (sim, racismo puro por parte do doutorando da LSE, que mais tarde foi totalmente rechaçado). Essas pesquisas até têm sua utilidade, já que escancaram o que nós, feministas, tanto repetimos: que existe uma diferença na percepção de homens e mulheres e que o padrão de beleza imposto é branco, no caso desses dois exemplos. Mas o problema é que, despidas de questionamentos de ordem política, social e cultural, elas acabam por reforçar o que nós com tão duras penas tentamos minar e questionar.

Ao prover explicações baseadas somente na dimensão biológica (cérebro, cromossomos, hormônios), essas pesquisas afirmam as desigualdades como naturais, não sociais. Muitas vezes ignorando o debate natureza x cultura, esse tipo de pesquisa coloca a cultura (normalmente machista, classista e racista) como consequência inescapável de um hardware pré-instalado em nós, seres humanos.

Em contrapartida, o que nós, feministas, propomos é, no mínimo, que fatores sociais sejam levados em conta e que esses estudos sejam vistos não só como inseridos numa cultura como também como instrumentos de sua propagação. É por isso que precisamos de mais mulheres e mais feministas no campo da biologia da evolução.


* As páginas se referem ao original em inglês: Dawkins, Richard. The Selfish Gene: New Edition. Oxford, New York: Oxford University Press, 1989.

por todas nós


Hoje o blog comemora um ano de existência. E estamos muito felizes. São mais de 200 textos, mais de 500 comentários e 96.000 visitas! Tentando com a nossa proposta de pluralidade, publicamos textos,  de sete colaboradoras fixas, 11 relatos enviados para o Sexismo de Cada Dia e nove Guest Posts. Este espaço é uma (pequena) plataforma, mas que nós podemos atestar pessoalmente ser muito significativa.

Questões de gênero são geralmente explosivas porque mexem com ansiedades relacionadas a normas sociais e inevitavelmente vêm atreladas à questão da sexualidade. O blog promove um fórum para podermos nos expressar livremente e desenvolver um argumento completo, que pode então ser lido e discutido. E é particularmente eficaz para contrabalancear páginas e blogs misóginos, ainda que muitos deles tenham milhares de seguidores.

Fora o desejo de transformar a sociedade hodierna, esse dado também evidencia a necessidade da existência deste espaço e dos espaços das nossas colegas feministas. Se a reação de disposição contrária à ação que clama liberdade e igualdade a todas as mulheres é tão intensa e, nos parece tantas vezes, desproporcional, então só podemos concluir que sob a superfície do humor e do afeto brasileiros esconde-se, ao lado do racismo e da homofobia, e de um sem número de preconceitos, também a misoginia, também a discriminação de gênero. Expor essa ferida é sem dúvida a melhor forma de sarar.

Precisamos de mais textos, mais relatos, 'causos', anedotas, reflexões. Enviem suas contribuições - de qualquer tamanho, linguagem, assinados ou anônimos.


Acima de tudo, muito, muito obrigada por tudo! Por nos acompanharem, por deixarem comentários, por todo o carinho!

E não se esquecem de nos seguir no Facebook e no Twitter!


por Roberta Gregoli


Deu no Financial Times - moça escreve carta para o jornal pedindo dicas para encontrar marido rico e leva um baita fora do editor:

MARIDO RICO
Saiu no Financial Times (maior jornal sobre economia do mundo)

Contudo, mais inacreditável que o "pedido" da moça, foi a disposição de um rapaz que, muito inspirado, respondeu à mensagem, de forma muito bem fundamentada. Sensacional!! Leiam...

E-mail da MOÇA:

"Sou uma garota linda (maravilhosamente linda) de 25 anos. Sou bem articulada e tenho classe. Estou querendo me casar com alguém que ganhe no mínimo meio milhão de dólares por ano. Tem algum homem que ganhe 500 mil ou mais neste jornal, ou alguma mulher casada com alguém que ganhe isso e que possa me dar algumas dicas? Já namorei homens que ganham por volta de 200 a 250 mil, mas não consigo passar disso. E 250 mil por ano não vão me fazer morar em Central Park West. Conheço uma mulher (da minha aula de ioga) que casou com um banqueiro e vive em Tribeca! E ela não é tão bonita quanto eu, nem é inteligente. Então, o que ela fez que eu não fiz? Qual a estratégia correta? Como eu chego ao nível dela? (Raphaella S.)"


Resposta do editor do jornal:
"Li sua consulta com grande interesse, pensei cuidadosamente no seu caso e fiz uma análise da situação. Primeiramente, eu ganho mais de 500 mil por ano. Portanto, não estou tomando o seu tempo a toa.
Isto posto, considero os fatos da seguinte forma: Visto da perspectiva de um homem como eu (que tenho os requisitos que você procura), o que você oferece é simplesmente um péssimo negócio.
Eis o porquê: deixando as firulas de lado, o que você sugere é uma negociação simples, proposta clara, sem entrelinhas : Você entra com sua beleza física e eu entro com o dinheiro.
Mas tem um problema. Com toda certeza, com o tempo a sua beleza vai diminuir e um dia acabar, ao contrário do meu dinheiro que, com o tempo, continuará aumentando.
Assim, em termos econômicos, você é um ativo sofrendo depreciação e eu sou um ativo rendendo dividendos. E você não somente sofre depreciação, mas sofre uma depreciação progressiva, ou seja, sempre aumenta!
Explicando, você tem 25 anos hoje e deve continuar linda pelos próximos 5 ou 10 anos, mas sempre um pouco menos a cada ano. E no futuro, quando você se comparar com uma foto de hoje, verá que virou um caco.
Isto é, hoje você está em 'alta', na época ideal de ser vendida, mas não de ser comprada.
Usando o linguajar de Wall Street , quem a tiver hoje deve mantê-la como 'trading position' (posição para comercializar) e não como 'buy and hold' (compre e retenha), que é para o quê você se oferece...
Portanto, ainda em termos comerciais, casar (que é um 'buy and hold') com você não é um bom negócio a médio/longo prazo! Mas alugá-la, sim! Assim, em termos sociais, um negócio razoável a se cogitar é namorar.
Cogitar...Mas, já cogitando, e para certificar-me do quão 'articulada, com classe e maravilhosamente linda' seja você, eu, na condição de provável futuro locatário dessa 'máquina', quero tão somente o que é de praxe: fazer um 'test drive' antes de fechar o negócio... podemos marcar?"
(Philip Stephens, associate editor of the Financial Times - USA)"

Vi este texto hoje compartilhado no Facebook, mas pelo visto a anedota é velha. Assim como é velha a premissa na qual se baseia: como diz a Barbara, a gostosona interesseira sendo colocada no seu devido lugar.

O pior é que não saiu no Financial Times. Procurei a referência original e o único texto em inglês que encontrei foi num site brasileiro, de um "orientador profissional" (?). Mas, é claro, a referência (inventada) vem a calhar: a legitimidade de um grande jornal serve para fazer passar um machismo descarado.


Na base do texto está o velho golpe do baú. Casar por dinheiro é, sem dúvida, uma ideia machista, já que sugere que uma mulher não tem capacidade de se fazer na vida, que é consumista e interesseira "por natureza", etc. Mas até que ponto não existe, sim, uma barreira concreta para que as mulheres cheguem ao topo? O teto de vidro é um fenônemo real e observável. Quantas são as mulheres que ganham mais de 500.000 dólares por ano nos Estados Unidos? Das 100 maiores fortunas norte-americanas, só 13% pertencem a mulheres.

E o texto leva a uma pergunta maior, ainda que tangencial: até que ponto a ideia do amor romântico também não serve a um discurso machista? Já vimos como muito do romantismo não passa de criação premeditada e meticulosa para vender. E quanto tempo e energia as mulheres não gastam - energia essa que poderia ser direcionada a outras venturas - na busca obsessiva e socialmente inculcada do par romântico? Quantas mulheres não permanecem em relações abusivas "em nome do amor" ou por medo de serem socialmente taxadas como 'solteironas'? Não digo isso para me juntar ao coro que culpa as mulheres por tudo (isso seria fomentar ódio a mim mesma, pois provavelmente todas as mulheres já passaram por alguma dessas situações pelo menos uma vez na vida), mas para entendermos como o machismo é altamente difundido na nossa cultura.

Mas, voltando ao texto, já disse e volto a afirmar: num mundo de opções limitadas para as mulheres, a beleza física e a sexualidade se tornam ferramentas de empoderamento e ascensão social. Não são maneiras de empoderamento pelas quais nós, feministas, lutamos - ou mesmo admiramos -, mas culpar as mulheres que se utilizam dessas práticas não deixa de ser tão (ou mais) machista quanto as práticas em si. 

No caso da suposta carta, se sentir vingadx pela resposta do editor não passa de slut shaming. Machismo com requintes de sadismo. 

Mesmo que a carta fosse real, a pergunta da moça é parva, mas mais parva ainda é a resposta, que naturaliza e leva às últimas consequências a comodificação do corpo feminino. A resposta do editor justifica essa comodificação através de um discurso técnico legitimado por sua própria (suposta) fortuna, e se aproveita da situação, se colocando como potencial "locatário". E por que ele não é constrangido da mesma maneira que ela por querer uma relação puramente monetária? O cara é comedor/esperto, a mulher é puta, que é provavelmente um dos padrões duplos mais batidos que existem.

O fato de pessoas de outro modo bem-intencionadas acharem graça de uma piada misógina como essa mostra o quanto o machismo está intricado social e culturalmente. Orai e vigiai porque, como sempre dizemos, o problema não é ver machismo em tudo. O problema é não ver.


por Roberta Gregoli


Jogo dos erros: Qual o problema com esta imagem?

Muito se diz da competição feminina no ambiente de trabalho e como por vezes mulheres em cargos mais altos são particularmente competitivas com outras mulheres. Enquanto é verdade que, no geral, mulheres são criticadas muito mais ferozmente do que seus colegas homens pelo mesmo tipo de comportamento (o famoso padrão duplo), a pergunta que não quer calar é: É possível ter uma atitude feminista ao reclamar da sua chefe?

Não seria o caso de negar que existem, sim, mulheres particularmente competitivas, fato observado não só em empresas como também em outros ambientes, como a política (vide Margaret Thatcher), mas para evitar que - como sempre - as mulheres levem a culpa por tudo, é preciso enfatizar que a raiz do problema é o machismo introjetado, não a mulher individual

E não é de se espantar que mulheres introjetem esse padrão de comportamento. Na cultura popular, o chamado princípio Smurfete, a existência de uma única personagem feminina num mundo de outro modo dominado por homens, continua presente em diversos produtos culturais... até hoje. Para citar dois exemplos brasileiros, nunca ouvi ninguém questionar o CQC por ter uma única (e mais recente) comediante mulher no seu quadro ou tampouco estranhar que, no filme De Pernas pro Ar (Roberto Santucci, 2010), Alice seja virtualmente a única mulher na empresa em que trabalha no início do filme. A consequência disso é a naturalização de um mundo não-natural (da última vez que verifiquei ainda éramos 50% da população mundial).

Nesses casos, em que uma única mulher serve para simbolizar todo o gênero, a figura feminina é chamada mulher-símbolo (minha tradução do termo token woman do inglês). O mesmo conceito de token se aplica a outros grupos minoritários: vemos em novelas x negrx-símbolo ou o gay-símbolo. Esse tipo de representação superficial tem por objetivo criar a ilusão de representatividade, sem alterar o paradigma estrutural ou significativamente. O equivalente a dizer que, agora que Dilma Rousseff é presidenta, não há mais machismo no Brasil.

"A negra-símbolo da empresa? É isso mesmo que você se considera,
Ms Corwin? Você é muito mais do que isso, eu lhe asseguro.
Você também é nossa mulher-símbolo."

Para expandir sobre o tópico, deixo vocês com este ótimo vídeo da Anita Sarkeesian do excelente Feminist Frequency, que descreve em detalhes esses dois conceitos - o princípio Smurfete e a mulher-símbolo - citando diversos exemplos da cultura estadunidense.


Legenda em português disponível clicando no botão no canto inferior direito


por Roberta Gregoli


Hoje estou lutando com um capítulo da tese, então, infelizmente, não vou conseguir travar outra luta vã com um texto aqui no blog. Mas, para não passar batido, aproveito da minha pesquisa uma citação que vem bem a calhar tendo em vista os recentes comentários de nossos novos fãs masculinistas.

Como a proeminente Tania Modleski já dizia há mais de uma década, esses comentários:

[...] confirmam minha própria convicção de que, por mais que a subjetividade masculina esteja "em crise", como muitas feministas otimistas [e homens que se sentem lesados] agora declaram, temos que considerar até que ponto o poder masculino não é, na verdade, consolidado através de ciclos de crise e resolução, por meio dos quais os homens, em última instância, lidam com a ameaça do poder das mulheres incorporando-o.

Como sabe qualquer economista, crises são também oportunidades. Para os que já têm o capital, claro, não para os que estão na extremidade inferior da escala.

No contexto de gênero, proclamar uma grande crise é uma forma de se manter no poder, negando o próprio privilégio, negando a legitimidade da demanda do outro por poder e, consequentemente, reforçando e reinventando mecanismos de dominação.

Isso não quer dizer que os homens não sejam oprimidos pelo patriarcado, mas, bom, para desmantelar o patriarcado nós já temos o feminismo...

É nisso que dá tentar reinventar a roda

Referência:
Modleski, Tania. Feminism Without Women: Culture and Criticism in a "Postfeminist" Age. New York and London: Routledge, 1991. Minha tradução.


por Roberta Gregoli

Margaret Thatcher morreu esta semana, mas muito do que ela começou sobrevive. Ela introduziu medidas que até hoje norteiam a política inglesa e mundial: livre mercado, privatizações, desmantelamento dos sindicatos e do Estado de bem estar social, promoção da cultura bélica, suspeita com relação à Europa continental (uma das primeiras eurosceptics)... Tony Blair e David Cameron são seus descendentes diretos. Não é difícil entender por que a esquerda a detesta. E com razão. Muito do que foi semeado durante o seu governo resulta hoje numa das piores crises econômicas da modernidade.

Como feminista e de esquerda, me vejo num dilema que só consigo resolver separando as políticas conservadoras de Thatcher de sua conquista enquanto mulher no poder. Sendo de esquerda, não pretendo redimi-la; em contrapartida, como feminista, estou ciente do machismo generalizado, presente, inclusive, na militância e na elite intelectual de esquerda. Sem desconsiderar ou minimizar os malefícios do governo Thatcher, então, me proponho a analisar as reações a ela enquanto figura pública na política mundial.

Se eu não fosse feminista, seria fácil odiar Margaret Thatcher. Se eu não considerasse constantemente a dimensão de gênero, simplesmente me juntaria à multidão que a apedreja sem cessar, mesmo depois de morta. Como feminista, no entanto, acredito que muito da bile que ela atiça tenha base nos padrões duplos que nós, feministas, tão bem conhecemos.

Como feminista, esta imagem não pode ser nada além de notável -
insuficiente, mas notável
Thatcher foi ambiciosa - característica até hoje mal-vista numa mulher - e ousou chegar ao poder. Mais que isso, ousou se agarrar a ele por mais de uma década. O mundo não perdoou tamanha ousadia: acho difícil pensar em outra figura política que tenha gerado tamanha expressão pública de ódio: Reagan implementou medidas similares nos EUA e morreu carismático aos olhos do grande público; FHC continua admirado apesar de toda a Privataria Tucana e nem mesmo o irredimível Fernando Collor de Mello viveu o ostracismo político e pessoal experimentado por Thatcher (que, sublinhe-se, nunca foi acusada de corrupção), após ter sido traída por seu próprio partido e chutada para fora do número 10 da Downing Street. Nem George Bush mereceu um blog para contar os dias para a sua morte. Talvez Sarah Palin cause semelhante ira, mas, bom, ela também é mulher.

Thatcher foi a primeira mulher chefe de Estado na Europa e a primeira e única Primeira Ministra da Inglaterra. E isso é, sim, extraordinário. Na Inglaterra, uma sociedade tão classisista como a brasileira e a pior em mobilidade social no mundo desenvolvido até hoje, Margaret Roberts, filha de um quitandeiro, saiu da working class das East Midlands (que, como todo o norte da Inglaterra, é alvo de preconceito regional) e, de bolsa em bolsa, chegou a Oxford.

Estando eu mesma em Oxford, sei bem do sexismo - por vezes velado, outras nem tanto - destilado no bastião da tradição inglesa. Isso em 2013, imagino como teria sido na década de 1940, quando não havia educação mista e mulheres eram segregadas a alguns poucos colégios. E não para por aí, já que o Parlamento inglês é notadamente uma extensão de Oxbridge: 75% dxs Primeirxs Ministrxs da Inglaterra estudaram em Oxford ou Cambridge e, ainda nos dias de hoje, o ministério de Cameron têm mais ex-alunos de um único colégio de Oxford do que mulheres.

A ingenuidade de se tomar qualquer mulher como ícone feminista

A morte de Thatcher suscitou também reações positivas, já que ela era uma dessas figuras polarizadoras, que agitam amor ou ódio. O Economist, como bom jornal neoliberal, traz uma matéria intitulada 'A Dama que Mudou o Mundo'. O Femen Brazil a homenageou com a imagem acima, cuja incongruência a Lola Aronovich já analisou em detalhes. Realmente não é o caso de celebrar Thatcher como ícone feminista, e a chamada por luta na imagem do Femen é absolutamente enganadora: a Dama de Ferro não lutou pelas mulheres. Longe disso, ela era abertamente anti-feminista e muitas de suas políticas foram detrimentais às mulheres e aos demais grupos minoritários. Thatcher tampouco é modelo de conduta para mulheres no poder: dizem que sofria da síndrome da abelha rainha, sentindo-se à vontade cercada por homens e fazendo pouco ou nenhum esforço para promover outras mulheres a posições de poder.

Enquanto é verdade que Thatcher usava o fato de ser mulher para promoção pessoal, sem compromisso com o feminismo, para mim é difícil não soltar um sorriso ao ver uma mulher num palanque, proferindo as seguintes palavras para uma plateia homogeneamente composta por velhos brancos da elite britânica:

Eu me ponho diante de vocês esta noite, no meu vestido de chiffon vermelho de gala, meu rosto levemente maquiado, meus lindos cabelos gentilmente enrolados: a Dama de Ferro do mundo ocidental!

Como a própria Thatcher, sua fala é ambivalente: ao mesmo tempo em que ironiza sua feminilidade, ela traz o seu gênero para o holofote. Esse tipo de ostentação não deixa de ser uma afronta e, muito antes de Zagallo, é uma maneira sutil de dizer que o mundo teria que engolir uma mulher dirigindo um dos países mais poderosos do Ocidente.

Celebração sexista: "a bruxa está morta"

Não há dúvida de que o estigma de gênero a acompanhou sempre. No documentário da BBC pela ocasião de sua morte, além de elementos sexistas como constantes referências a sua aparência e expressões como "uma mente masculina num corpo feminino" e "histriônica", xs entrevistadxs dizem abertamente que se acreditava que uma mulher não teria capacidade para governar e, na sequência, narram o ressentimento em se ter uma líder mulher.

Isso sem contar o recente filme A Dama de Ferro, que optou por enfatizar sua doença e sua vida familiar em detrimento de sua carreira política. E aqui discordo da Lola Aronovich quando ela diz que essa abordagem é positiva pois a humaniza. Para mim, esse viés não é arbitrário e se insere na longa tradição de patologização das mulheres, diminuindo uma líder histórica forte à figura patética da mulher vulnerável e desequilibrada.

O ângulo alto literalmente rebaixa Thatcher (Meryl Streep)
enquanto o enquadramento reforça seu isolamento político e mental

Produto de seu tempo e de suas origens conservadoras, Thatcher se apropriou do discurso machista e o utilizou a seu favor. É sob esta ótica que é possível entender a fala: "As feministas me odeiam, não é? Eu não as culpo, porque eu odeio o feminismo. É um veneno" (minha tradução). Para evitarmos uma retórica redutora e maniqueísta, nós, feministas, temos que dar crédito a suas conquistas num mundo tão machista que as próprias mulheres são co-optadas.

Mais celebração sexista: "a vadia está morta"

Ambiciosa, honesta, focada, trabalhadora árdua, Thatcher não é um ícone feminista, mas foi uma mulher notável. Tendo dado uma espiadela nesta incubadora hostil da política inglesa que é Oxford, confesso que admiro Thatcher por ter chegado lá. É preciso respeitá-la por esse feito, enquanto mulher e contra todas as probabilidades.

O que ela fez com o poder que tão arduamente conquistou, no entanto, é uma pena. É triste que o mundo que ela ajudou a formatar seja um mundo pior, tanto para as mulheres quanto para as outras minorias. Por outro lado, não deixa de ser verdade que este mundo foi, e é, particularmente duro com ela.

É verdade que, naquela altura, qualquer outrx Primeirx Ministrx teria feito coisas similares, e que todos os que a seguiram continuaram na mesma linha. Também é verdade que um homem teria se safado da ira da mídia com muito mais facilidade. Mas isso não faz de Thatcher nem um pouco menos vilã. Se queremos ser justxs e quebrar com a vilanização por gênero, vamos nos preparar para chutar o pau da barraca quando Blair bater as botas.
- Coletivo Feminista de Liverpool (minha tradução, original aqui)

Thatcher não é ícone feminista nem modelo de conduta para mulheres, mas odiá-la singularmente por todas as mazelas do capitalismo, sem atenção aos mecanismos misóginos em operação para suscitar tamanho ódio é igualmente reducionista. Com convicções praticamente imutáveis, Thatcher operava no preto no branco. Nós não devemos cair no mesmo erro.


por Roberta Gregoli


Feliciano é só a ponta do iceberg

Não, Marco Feliciano ainda não renunciou à Presidência da Comissão de Direitos Humanos (CDHM) da Câmara. Digo 'ainda' porque o cerco está cada vez mais fechado, com manifestações da sociedade civil, artistas, políticos, ONGs e até funcionárixs da Câmara, e parece só questão de tempo até que Feliciano caia. Ênfase no 'parece', pois, onde se nomeia alguém respondendo a um processo por homofobia para presidir uma comissão de direitos humanos, tudo pode acontecer.

A atuação da sociedade civil tem sido exemplar e demonstra vividamente sua capacidade de organização, apesar do que proclamam xs resignadxs em tom blasé. No entanto, apesar da abundância de informações, é raro encontrar uma análise de maior profundidade sobre o tema. A maioria dos textos batem na já conhecida tecla da incongruência do pastor para o cargo - não que isso deva ser tomado levemente, mas o fato é que, ainda que Feliciano caia, os problemas relacionados à CDHM não estarão resolvidos.

Feliciano é sintoma, não causa. E sintoma não somente dos posicionamentos reacionários e retrógrados de uma parcela da população como também do achatamento da discussão. Como temos observado, centralizar o debate num único indivíduo é um poderoso mecanismo de canalização da ação social, mas é também inevitavelmente reducionista.

A Maíra já começou a questionar os diversos fatores envolvidos e eu quero continuar avançando a discussão para além da demonização de uma única figura, que não passa da ponta de um iceberg sobre o qual muito pouco se fala.

Primeiramente, se Feliciano sair, o prospecto imediato está longe de otimista. A Vice-Presidente da Comissão responde a diversos processos no STF bem como todxs xs outrxs possíveis substitxs. E todxs são do Partido Social Cristão (PSC). Líderes religiosos não representam uma ameaça aos direitos humanos necessariamente, como lembrado pelo próprio Marco Feliciano ao se comparar, num delírio de grandeza, a Martir Luther King Jr. O problema é a sobre-representação de um partido, sobretudo de um partido religioso, se o princípio for o da laicidade do Estado. Como explica Domingos Dutra:

O PSC, que tem 17 deputados na Câmara, tem oito deputados na comissão, entre titulares e suplentes. O PT, que tem 90 deputados, tem quatro deputados na comissão. Na hora que a comissão é de um só partido acabou a diversidade, acabou a pluralidade, que são essenciais na vida desta comissão.

E essenciais na vida da democracia. Nesse sentido, o slogan "Feliciano não me representa" é brilhante porque contesta a validade democrática da eleição pro forma que levou Marco Feliciano à Presidência da Comissão.


Veja os dados aqui

Apesar de ter quem diga que a CDHM 'caiu' nas mãos do PSC, ela é uma comissão estratégica para o partido, pois é potencial veículo para mudanças que são difíceis para alguns evangélicos engolir. Além do crescente apoio popular à PEC do casamento igualitário e da recente ampliação dos direitos reprodutivos das mulheres para abranger a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, este mês o Conselho Federal de Medicina, em resolução inédita, apoiou a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Ainda que caminhemos em direção ao Estado laico com vagar, a bancada evangélica tem lá suas razões para se preocupar.

O que escapa ao sensacionalismo da maioria das notícias sobre o assunto é que os cargos nas comissões da Câmara são concedidos por meio de acordos prévios, ou seja, barganhas políticas. É por isso que existe um fundo de verdade na acusação que Feliciano fez à Veja, dizendo que a renúncia de Domingos Dutra (antecessor do PT na Presidência da CDHM) foi um teatro. Tendo visto o vídeo da renúncia e o histórico de Dutra, é pouco provável que sua comoção tenha sido encenada, mas quando Feliciano declara que "foi um acordo partidário" e "acordo partidário não se quebra nessa Casa", ele tampouco está mentindo.

Se analisarmos xs integrantes da Comissão de Direitos Humanos (a lista está disponível aqui, no site oficial da Câmara, para qualquer umx ver), as vagas ocupadas pelo Pastor Feliciano e pela Vice-Presidente, Antônia Lucélia, não foram originalmente destinadas ao PSC, e sim ao PMDB.

É preciso que isso seja enfatizado, até mesmo para cobrar do PMDB a responsabilidade que lhe cabe e exigir prestação de contas: Por que o PMDB abriu mão dessas vagas? Afinal, não fosse essa jogada inicial, não haveria polêmica para início de conversa.

Outro nome que salta aos olhos na lista dos membros da Comissão é o de Jair Bolsonaro, suplente de uma vaga em aberto (se é que isso faz sentido). Então fica claro que o buraco é muito mais embaixo: não só temos um Presidente que é acusado de discurso de ódio contra minorias, mas também um membro que é abertamente a favor do uso de tortura. Uma comissão de direitos humanos composta por homofóbicos, misóginos, racistas e torturadores é muito mais que ironia, é circo tragicômico.

Uma segunda pergunta pertinente é com relação ao PT, que, afinal, estava ocupando a Presidência da CDHM e tem outras iniciativas, como a Comissão da Verdade, intimamente ligadas à questão dos direitos humanos: Por que aceitar a barganha de cargo?

Domingos Dutra responde:

[N]a bancada do PT, o líder escolheu outras comissões que na avaliação do partido, eram mais importantes que a de Direitos Humanos. O PT não quis esta Comissão, o que foi um erro. E as consequências estão aí. Por outro lado, a liderança do PMDB também agiu. O deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi o grande arquiteto desse resultado 

A renúncia de Domingos Dutra, então, pode ser vista como um ato de repúdio não somente à nomeação de Feliciano e ao fato da votação ter se dado de portas fechadas, mas também ao acordo partidário que desencadeou esse desfecho. Dutra, aliás, está migrando para a Rede de Marina Silva, justamente por não concordar com as alianças do PT no Maranhão.

Com base nessa sucessão de equívocos que resultou no circo que agora vemos, a articulação da sociedade civil tem que se focar numa demanda mais ampla, pela total reformulação da Comissão. A exigência tem que ser a de uma nova composição, excluindo totalmente figuras com histórico contrário à dignidade da pessoa humana, como Feliciano e Bolsonaro, e atentando para a proporcionalidade partidária e de interesses, de maneira que exista representatividade de fato. Aí sim, poderemos chamá-la de democrática. 

O poder da sociedade civil está comprovado, mas, para garantir que essa incrível série de manifestações não passe de um modismo passageiro e infecundo, é preciso levar em conta o panorama no qual a CDHM está inserida. Somente a partir de um debate mais profundo será possível engendrar mudanças de real impacto, para que os direitos humanos sejam tratados com a seriedade que merecem, num país que claramente ainda não superou sua recente história de autoritarismo e violência - história da qual a atual Comissão de Direitos Humanos é reprodução e reprodutora.


Agradecimentos à Priscilla Santos pelo debate animado que resultou em importantes contribuições para este texto.


por Roberta Gregoli


Do site Um dia ainda viro cartunista

...ser homem branco heterossexual de classe AB seria o nível fácil.

A metáfora é de Rachel Saklr. Em contrapartida, ser mulher, negra/indígena de classe D seria a dificuldade máxima.

É claro que é possível ganhar o jogo nos níveis de dificuldade mais elevados: tem gente que é mesmo boa de jogo, há quem tem sorte, há xs que têm inteligência e esforço acima da média. Agora, não dá para medir o todo por essas exceções e sair por aí dizendo que não existe sexismo no Brasil porque temos uma Presidenta ou que não existe racismo porque tenho um amigo negro que faz faculdade pública.

É preciso ter clareza que o jogo é diferente e, enquanto essas pessoas devem, sim, ser celebradas por suas conquistas excepcionais, não deixa de ser muito injusto culpabilizar quem não chega lá. 

O contrário também é verdadeiro: nem todo o homem branco cissexual de classe alta vai ganhar no jogo da vida, mas não dá para ficar chorando as cotas derramadas porque o jogo agora ficou um cadinho mais difícil.


Cotas raciais e de gênero são polêmicas porque alguns simplesmente não conseguem - ou não querem - enxergar a bruta vantagem que têm sobre xs outrxs - vantagem que vem das oportunidades de berço, e até muito antes do nascimento:

Breve história do privilégio

Em outras palavras imagens, se a vida fosse uma corrida, ela seria assim:

E a reação que enfrentamos quotidianamente
por apontar essa bruta injustiça é mesmo essa

As metáforas são várias, mas a do video game é particularmente pertinente porque o mundo dos games é sabidamente sexista. A começar pela representação das mulheres nos jogos, de Lara Croft a qualquer coadjuvante boazuda.



Na vida real, Anita Sarkeesian, do excelente Feminist Frequency, lançou um projeto para analisar a representação das mulheres nos video games e acabou sendo vítima de uma campanha de ódio massiva, que incluia até um jogo interativo em que jogadores eram encorajados a beat the bitch out (espancar a vadia).

Ainda mais perturbador - se é que isso é possível - que essa demonstração abertamente misógina em grande escala foi que os perpetradores constantamente se referiam a essa campanha de assédio e abuso como um jogo. - Anita Sarkeesian
Se a vida é um video game, misóginos são heróis. Era o que faltava. Mas antes fosse só no mundo dos games. O caso recente de dois jogadores de futebol americano que estupraram uma garota de 16 anos em Steubenville (que, apesar do nome, é uma cidade real nos Estados Unidos) resultou em condenação, coisa rara - vide o revoltante caso da banda New Hit em solo nacional. Apesar de terem sido julgados e condenados, o tom da mídia foi de comoção por 'essas jovens estrelas do esporte' que tiveram seu futuro 'arruinado':

Uma paródia de 2011 precede o caso e é assustadoramente parecida 
na sua abordagem distorcida do retrato dos criminosos.
Obrigada à Marylin Lima pela indicação dos links

Não é à toa que vítimas de abuso sexual são geralmente reticentes a vir a público: na cultura do estupro - que são todas as culturas -, é preciso muita consciência para se empoderar. Seja na realidade virtual ou na visceral, infelizmente, não é raro que criminosos sejam tidos como heróis e as vítimas compadeçam. O final feliz fica por conta de Anita Sarkeesian, que, apesar de todo o bullying, assédio e ódio, manteve sua campanha e conseguiu angariar um valor 25 vezes maior do que havia pleiteado inicialmente para o seu projeto. Mesmo no nível difícil, Sarkeesian chegou lá.


por Roberta Gregoli

Na semana passada aconteceu, em Londres, o maravilhoso festival WOW - Women of the World. Não pude participar de todas as palestras, mas fiz questão de ir à entrevista com a Naomi Wolf, que pode ser vista na íntegra aqui. Todas as palestras estão disponíveis online e incluem celebridades como Alice WalkerGordon Brown. Vale muito a pena dar uma olhada.

Naomi Wolf é feminista, autora de sete livros, três dos quais foram traduzidos para o português: além do famoso O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres, também Fogo com fogo Promiscuidades: A luta secreta para ser mulher. A entrevista para o WOW se concentra no seu livro mais recente, Vagina.

O título já reivindica uma palavra ainda considerada tabu, pelo menos em língua inglesa, e, ao mesmo tempo em que é ousado, é também uma ótima estratégia de marketing. O subtítulo, "A New Biography", faz alusão a uma parte biográfica polêmica, na qual Wolf descreve os problemas de saúde decorrentes da compressão de um nervo pélvico, que resultou na falta de sensação sexual e - o que para ela foi o momento eureka - na perda do que ela chama de 'estados positivos de consciência', ou seja, num estado de depressão. A partir dessa descoberta pessoal da conexão entre cérebro e vagina, o livro se propõe a investigá-la a fundo, fazendo um levantamento de estudos e entrevistas com médicos e cientistas.

Na entrevista, Wolf defende que o tema da libertação sexual feminina está longe de esgotado, tendo que vista que, apesar das quatro décadas desde a revolução sexual, apenas 30% das mulheres (a referência é a mulheres estadunidenses) chegam ao orgasmo e cerca de 30% vivem em estado de baixa libido. A hipótese, interessantíssima, é que mulheres sexualmente satisfeitas são mais difíceis de serem subjugadas, e o estupro como arma de guerra comprova a hipótese pelo reverso.

O uso de estudos com base na biologia pode ser potencialmente problemático se ignorar a biologia e a medicina enquanto conjuntos de práticas e discursos construídos na cultura e moldados por ela, ou seja, se forem tomados como universais e imutáveis. O debate entre natureza e cultura é amplo e argumentos puramente biológicos correm o risco de essencializar 'o feminino'. Como uma pessoa da plateia levantou na hora das perguntas, ao focar na vagina, ficam excluídas, por exemplo, as mulheres transgênero. Wolf se saiu bem dizendo que não encontrou material científico suficiente sobre mulheres transgênero para elaborar sobre o tema, mas não endereçou o problema fundamental de reduzir a experiência feminina à vagina.

Sem ter lido Vagina para poder opinar com propriedade (quem tiver lido fique à vontade para comentar abaixo), a ideia de subverter o discurso médico tradicional, mais afeito à patologização das mulheres, e substituí-lo por novos discursos afirmando o prazer feminino - esse tópico sobre o qual nenhuma 'boa moça' deve falar - é sempre bem-vinda. Num presente em que o slut-shaming continua vivo e ativo, salutamos trabalhos na direção de substituir as narrativas de vergonha e doença associadas ao sexo por narrativas positivas de prazer, reforçando a associação entre sexo e libertação feminina. 

Tietagem acadêmica, sim, senhorx!

Como Conquistar um Homem