-----> Este Blog já apareceu nestas emissoras <------

por Roberta Gregoli

Uma leitora querida nos enviou um vídeo que me inspirou a abordar um assunto no qual venho pensando faz algum tempo: a biologia da evolução. Reproduzo abaixo o vídeo, que serve como ilustração para alguns pontos que quero traçar, mas já adianto que o conteúdo é ofensivo, de mau gosto e traz informações imprecisas:


Eu já havia detectado vários problemas no vídeo, mas para os detalhes científicos que desconheço entrevistei um amigo que faz doutorado na área aqui na Universidade de Oxford. Como ele não fala português, expliquei a tese do vídeo e os principais argumentos mobilizados e a primeira reação dele foi: "Um abastardamento da ciência!".

A partir daí ele foi me apontando as barbaridades imprecisões propostas pelo vídeo, que discuto abaixo, incorporando também a minha interpretação enquanto feminista.


Mito: Os poros nos seios e bunda liberam mais feromônios, por isso os homens gostam mais dessas partes


Primeiro, a atração por seios e bunda está ligada à visão, não ao olfato. Apesar da explicação capenga do 'professor' - que, aliás, acho que diz mais sobre o seu gosto pessoal por sexo oral (e aqui fica o meu único ponto positivo para ele!) - ninguém fica excitado por cheirar um seio, como qualquer assinante da Playboy pode atestar.

Em segundo lugar, nós, feministas, sabemos muito bem que os ideais de beleza são culturalmente construídos e socialmente impostos. Como já vimos, o padrão de beleza na Idade Média era de seios pequenos e testas largas. Como explicar essa mudança de acordo com o argumento do vídeo? Os poros dilatados que liberam feromônio migraram da testa para a bunda?


Mito: Lucy se escondia numa moita e o cheiro de sua genitália atraía parceiros sexuais


Ahn? Numa moita? Ele estava lá pra ver, né? Só pode, porque do punhado de fósseis existentes, não há um único que tenha sido encontrado numa moita ou com qualquer vestígio que possa indicar esse padrão para a cópula.

Marofa de pomba nada!
Igualmente sem embasamento é a história do cheiro da vagina, elegantemente colocada pelo 'professor' como "marofa de pomba". E é este o ponto mais negativo do vídeo, na minha opinião: ele reforça um clichê dos mais toscos (quem nunca ouviu piadas que comparam o cheiro da vagina ao do bacalhau?). A associação entre vagina/mulher e sujeira/impureza é antiquíssima, presente em diversas religiões tradicionais, e essa é uma maneira de atualizá-la para um contexto contemporâneo laico. Parabéns por esse desserviço, 'professor'!


Mito: A migração do canal vaginal criou a família nuclear


O bonobo (Pan paniscus), a espécie mais próxima do ser humano, e a única em que a fêmea tem o canal vaginal na mesma posição que as mulheres, não se organiza em torno da família nuclear. Ponto. Toda a tese da 'aula' vai por água abaixo.

E nem precisamos entrar no detalhe de que não é preciso transar na posição papai-e-mamãe para ser capaz de identificar x parceirx. Ah, e 'papai-e-mamãe' em inglês é missionary position, não father and mother, ok?


Just-so stories


Esse tipo de narrativa sem embasamento científico sólido é chamada na ciência e na filosofia de just-so stories ('foi mais ou menos assim', numa tradução livre) ou falácia ad hoc. Explicações desse tipo concatenam fatos observáveis - A, B, C - e criam uma narrativa (fictícia) que mais ou menos explica como se chegou de A a B a C.

E vale lembrar que a evolução não é um agente inteligente, com uma agenda presciente, sabendo onde quer chegar. Muitas coisas acontecem simplesmente por acaso e tentar encontrar um único fator que explique algo tão complexo como a formação da família nuclear não passa de um disparate.

Fato - hipótese - resultado: Essencialismo biológico


O Gene Egoísta


Mesmo Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta, de 1976, considerado um divisor de águas do campo da biologia da evolução, não escapa do sexismo.

O livro traz um capítulo cujo título, "Batalha dos sexos", já anuncia o contexto no qual o autor enxerga as diferenças sexuais. O capítulo é permeado por linguagem sexista, com o óvulo sendo o "gameta honesto" e o espermatozoide o "gameta explorador" (p. 142*), os homens como sendo 'imprestáveis' ("Males, then, seem to be pretty worthless fellows", p. 143; homem como ser inútil é uma das estratégias de opressão do patriarcado - ao constantemente colocar a mulher no lugar retórico de superior, justifica-se maior cobrança e imposições às mulheres); e é interessante quando ele começa a narrar um cenário fictício em que existem dois sexos, iguais e sem hierarquia, A e B (pp. 300-301), e no final da história acontece, sem querer querendo, que A é o sexo masculino...

Não é o caso de atacar a biologia da evolução em si, mas a frequente falta de embasamento crítico e ético ao se fazer ciência. A ciência não é produzida no vácuo e xs cientistas inevitavelmente trazem sua bagagem cultural e social para suas hipóteses, análises e conclusões. Basta estudar um pouco da história da sexualidade para ver como a ciência já tratou as mulheres de maneira perversa. Não ter consciência e não incluir essa dimensão crítica com relação à própria formação resulta quase certamente na (re)produção de conhecimento preconceituoso.

De fato, sob o selo legitimador da ciência, muitos estereótipos de gênero nocivos são propagados: como o cérebro 'enxerga' homens e mulheres de maneira diferente ou mesmo como mulheres negras são menos atraentes que mulheres de outras etnias (sim, racismo puro por parte do doutorando da LSE, que mais tarde foi totalmente rechaçado). Essas pesquisas até têm sua utilidade, já que escancaram o que nós, feministas, tanto repetimos: que existe uma diferença na percepção de homens e mulheres e que o padrão de beleza imposto é branco, no caso desses dois exemplos. Mas o problema é que, despidas de questionamentos de ordem política, social e cultural, elas acabam por reforçar o que nós com tão duras penas tentamos minar e questionar.

Ao prover explicações baseadas somente na dimensão biológica (cérebro, cromossomos, hormônios), essas pesquisas afirmam as desigualdades como naturais, não sociais. Muitas vezes ignorando o debate natureza x cultura, esse tipo de pesquisa coloca a cultura (normalmente machista, classista e racista) como consequência inescapável de um hardware pré-instalado em nós, seres humanos.

Em contrapartida, o que nós, feministas, propomos é, no mínimo, que fatores sociais sejam levados em conta e que esses estudos sejam vistos não só como inseridos numa cultura como também como instrumentos de sua propagação. É por isso que precisamos de mais mulheres e mais feministas no campo da biologia da evolução.


* As páginas se referem ao original em inglês: Dawkins, Richard. The Selfish Gene: New Edition. Oxford, New York: Oxford University Press, 1989.

0 comentários

Como Conquistar um Homem