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por Roberta Gregoli

Margaret Thatcher morreu esta semana, mas muito do que ela começou sobrevive. Ela introduziu medidas que até hoje norteiam a política inglesa e mundial: livre mercado, privatizações, desmantelamento dos sindicatos e do Estado de bem estar social, promoção da cultura bélica, suspeita com relação à Europa continental (uma das primeiras eurosceptics)... Tony Blair e David Cameron são seus descendentes diretos. Não é difícil entender por que a esquerda a detesta. E com razão. Muito do que foi semeado durante o seu governo resulta hoje numa das piores crises econômicas da modernidade.

Como feminista e de esquerda, me vejo num dilema que só consigo resolver separando as políticas conservadoras de Thatcher de sua conquista enquanto mulher no poder. Sendo de esquerda, não pretendo redimi-la; em contrapartida, como feminista, estou ciente do machismo generalizado, presente, inclusive, na militância e na elite intelectual de esquerda. Sem desconsiderar ou minimizar os malefícios do governo Thatcher, então, me proponho a analisar as reações a ela enquanto figura pública na política mundial.

Se eu não fosse feminista, seria fácil odiar Margaret Thatcher. Se eu não considerasse constantemente a dimensão de gênero, simplesmente me juntaria à multidão que a apedreja sem cessar, mesmo depois de morta. Como feminista, no entanto, acredito que muito da bile que ela atiça tenha base nos padrões duplos que nós, feministas, tão bem conhecemos.

Como feminista, esta imagem não pode ser nada além de notável -
insuficiente, mas notável
Thatcher foi ambiciosa - característica até hoje mal-vista numa mulher - e ousou chegar ao poder. Mais que isso, ousou se agarrar a ele por mais de uma década. O mundo não perdoou tamanha ousadia: acho difícil pensar em outra figura política que tenha gerado tamanha expressão pública de ódio: Reagan implementou medidas similares nos EUA e morreu carismático aos olhos do grande público; FHC continua admirado apesar de toda a Privataria Tucana e nem mesmo o irredimível Fernando Collor de Mello viveu o ostracismo político e pessoal experimentado por Thatcher (que, sublinhe-se, nunca foi acusada de corrupção), após ter sido traída por seu próprio partido e chutada para fora do número 10 da Downing Street. Nem George Bush mereceu um blog para contar os dias para a sua morte. Talvez Sarah Palin cause semelhante ira, mas, bom, ela também é mulher.

Thatcher foi a primeira mulher chefe de Estado na Europa e a primeira e única Primeira Ministra da Inglaterra. E isso é, sim, extraordinário. Na Inglaterra, uma sociedade tão classisista como a brasileira e a pior em mobilidade social no mundo desenvolvido até hoje, Margaret Roberts, filha de um quitandeiro, saiu da working class das East Midlands (que, como todo o norte da Inglaterra, é alvo de preconceito regional) e, de bolsa em bolsa, chegou a Oxford.

Estando eu mesma em Oxford, sei bem do sexismo - por vezes velado, outras nem tanto - destilado no bastião da tradição inglesa. Isso em 2013, imagino como teria sido na década de 1940, quando não havia educação mista e mulheres eram segregadas a alguns poucos colégios. E não para por aí, já que o Parlamento inglês é notadamente uma extensão de Oxbridge: 75% dxs Primeirxs Ministrxs da Inglaterra estudaram em Oxford ou Cambridge e, ainda nos dias de hoje, o ministério de Cameron têm mais ex-alunos de um único colégio de Oxford do que mulheres.

A ingenuidade de se tomar qualquer mulher como ícone feminista

A morte de Thatcher suscitou também reações positivas, já que ela era uma dessas figuras polarizadoras, que agitam amor ou ódio. O Economist, como bom jornal neoliberal, traz uma matéria intitulada 'A Dama que Mudou o Mundo'. O Femen Brazil a homenageou com a imagem acima, cuja incongruência a Lola Aronovich já analisou em detalhes. Realmente não é o caso de celebrar Thatcher como ícone feminista, e a chamada por luta na imagem do Femen é absolutamente enganadora: a Dama de Ferro não lutou pelas mulheres. Longe disso, ela era abertamente anti-feminista e muitas de suas políticas foram detrimentais às mulheres e aos demais grupos minoritários. Thatcher tampouco é modelo de conduta para mulheres no poder: dizem que sofria da síndrome da abelha rainha, sentindo-se à vontade cercada por homens e fazendo pouco ou nenhum esforço para promover outras mulheres a posições de poder.

Enquanto é verdade que Thatcher usava o fato de ser mulher para promoção pessoal, sem compromisso com o feminismo, para mim é difícil não soltar um sorriso ao ver uma mulher num palanque, proferindo as seguintes palavras para uma plateia homogeneamente composta por velhos brancos da elite britânica:

Eu me ponho diante de vocês esta noite, no meu vestido de chiffon vermelho de gala, meu rosto levemente maquiado, meus lindos cabelos gentilmente enrolados: a Dama de Ferro do mundo ocidental!

Como a própria Thatcher, sua fala é ambivalente: ao mesmo tempo em que ironiza sua feminilidade, ela traz o seu gênero para o holofote. Esse tipo de ostentação não deixa de ser uma afronta e, muito antes de Zagallo, é uma maneira sutil de dizer que o mundo teria que engolir uma mulher dirigindo um dos países mais poderosos do Ocidente.

Celebração sexista: "a bruxa está morta"

Não há dúvida de que o estigma de gênero a acompanhou sempre. No documentário da BBC pela ocasião de sua morte, além de elementos sexistas como constantes referências a sua aparência e expressões como "uma mente masculina num corpo feminino" e "histriônica", xs entrevistadxs dizem abertamente que se acreditava que uma mulher não teria capacidade para governar e, na sequência, narram o ressentimento em se ter uma líder mulher.

Isso sem contar o recente filme A Dama de Ferro, que optou por enfatizar sua doença e sua vida familiar em detrimento de sua carreira política. E aqui discordo da Lola Aronovich quando ela diz que essa abordagem é positiva pois a humaniza. Para mim, esse viés não é arbitrário e se insere na longa tradição de patologização das mulheres, diminuindo uma líder histórica forte à figura patética da mulher vulnerável e desequilibrada.

O ângulo alto literalmente rebaixa Thatcher (Meryl Streep)
enquanto o enquadramento reforça seu isolamento político e mental

Produto de seu tempo e de suas origens conservadoras, Thatcher se apropriou do discurso machista e o utilizou a seu favor. É sob esta ótica que é possível entender a fala: "As feministas me odeiam, não é? Eu não as culpo, porque eu odeio o feminismo. É um veneno" (minha tradução). Para evitarmos uma retórica redutora e maniqueísta, nós, feministas, temos que dar crédito a suas conquistas num mundo tão machista que as próprias mulheres são co-optadas.

Mais celebração sexista: "a vadia está morta"

Ambiciosa, honesta, focada, trabalhadora árdua, Thatcher não é um ícone feminista, mas foi uma mulher notável. Tendo dado uma espiadela nesta incubadora hostil da política inglesa que é Oxford, confesso que admiro Thatcher por ter chegado lá. É preciso respeitá-la por esse feito, enquanto mulher e contra todas as probabilidades.

O que ela fez com o poder que tão arduamente conquistou, no entanto, é uma pena. É triste que o mundo que ela ajudou a formatar seja um mundo pior, tanto para as mulheres quanto para as outras minorias. Por outro lado, não deixa de ser verdade que este mundo foi, e é, particularmente duro com ela.

É verdade que, naquela altura, qualquer outrx Primeirx Ministrx teria feito coisas similares, e que todos os que a seguiram continuaram na mesma linha. Também é verdade que um homem teria se safado da ira da mídia com muito mais facilidade. Mas isso não faz de Thatcher nem um pouco menos vilã. Se queremos ser justxs e quebrar com a vilanização por gênero, vamos nos preparar para chutar o pau da barraca quando Blair bater as botas.
- Coletivo Feminista de Liverpool (minha tradução, original aqui)

Thatcher não é ícone feminista nem modelo de conduta para mulheres, mas odiá-la singularmente por todas as mazelas do capitalismo, sem atenção aos mecanismos misóginos em operação para suscitar tamanho ódio é igualmente reducionista. Com convicções praticamente imutáveis, Thatcher operava no preto no branco. Nós não devemos cair no mesmo erro.


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