A Maria C., querida leitora e colaboradora aqui do blog, enviou este Guest Post, que não poderia chegar em tempo mais propício, já que ontem, 5 de junho de 2013, o Estatura do Nascituro foi aprovado pela Comissão de Finanças. Maria é advogada e nos traz uma visão técnica sobre o assunto. Leitura fundamental.
Eu realmente amo crianças, e é recíproco: levo muito jeito com elas. Não tenho filhos, nunca estive grávida, mas desejo jamais passar pela experiência de um aborto. Contudo, creio que minhas crenças e opiniões pessoais são irrelevantes para retirar esta opção de toda e qualquer mulher deste país que decida fazê-lo. A pretensão de submetê-la à criminalidade e à clandestinidade é a suprema demonstração de arrogância, de desprezo pelx outrx, sua vida e suas dores, a repugnância total do complexo humano, do humano material – em contraposição ao formal.
Porque a maioria da população deste país, inclusive muitos dos que lerão este post, tacharão de criminosas as mulheres que por razões tão suas realizam um aborto? Podemos nós apontar nossos dedos e dizer que sim, que o que elas tinham em SEU corpo era mesmo um bebê quando a ciência (a autoridade competente, o CFM) diz que se trata de um feto ainda sem capacidade de sentidos até determinado período? As bruxas estão novamente nas fogueiras.
O Estatuto do Nascituro pretende legitimar a mais violenta caça às bruxas, alterar Códigos com sangue de vítimas (femininas, apenas), a pretexto da defesa do direito à vida em potencial – o nascituro, o feto mesmo, que é diferente de uma criança. Não me batam, isso é dito em julgamentos – feto e nascituro ainda não é criança.
Sua redação primorosa (!) alterará sensivelmente o regramento do nascituro. Atualmente o ser humano adquire personalidade jurídica, que é a capacidade de ser sujeito de direitos e deveres no nascimento com vida.
Contudo, o nascituro tem a salvo diversos direitos, pontuados nos locais adequados no próprio Código Civil (art. 2º) e em leis específicas. Cito a título de exemplo os clássicos alimentos gravídicos, medidas cautelares em expectativa de direitos sucessórios, etc.
Segundo o Projeto de Lei 478/97, art. 3º, o nascituro terá uma penca de expectativas de direitos, em que se prevê especificamente expectativa de todos os direitos à personalidade (?!) e diversos subjetivos (?!) fundamentais e correspondentes deveres dos genitores, sociedade e Estado. Se há expectativa é porque o direito não se incorporou ao patrimônio jurídico, sequer é futuro, é eventual e incerto.
Agora a pior parte, a relação destas impropriedades técnicas com a barbárie a se instaurar: a “coisificação” das mulheres, transformando-as em objeto que serve apenas a um meio, a utilidade de portar o nascituro, e não um ser completo, com um fim em si mesmo.
O art. 13 do Estatuto prevê que o nascituro concebido em ato de violência sexual não sofrerá qualquer restrição a direitos, inclusive à vida. Observa-se que na seção “Dos crimes” não está mais reproduzida a norma do Código Penal (art. 128) que previa a exceção (não-crime ao aborto) em caso de estupro, à gestante ou ao médico que praticou o aborto.
Não se anula apenas a liberdade sexual da mulher – uma garantia fundamental – pois legalmente o Código Penal em 1940 estava se lixando para isso. Extirpa-se sua dignidade enquanto pessoa humana.
O Código Penal visava resguardar a saúde mental, psíquica e até física da mulher vítima de estupro resultante em gravidez, e ainda seu direito “à honra” [de não carregar e criar o fruto de uma concepção criminosa]; o que modernamente é a concretização do direito fundamental objetivo à saúde, à privacidade, à liberdade (ou seja, as normas), decorrentes de sua condição de pessoa humana digna.
Portanto, a opção de aborto em caso de estupro tem raiz na dignidade humana feminina, traduzido no reconhecimento de não ser subjugada a tal ponto de gerar e criar o fruto de uma violência. Ao retirar-se tal possibilidade, retira-se a dignidade da vítima, sem opção. Sua dignidade é trocada por um suposto auxílio financeiro. Ocorre que este não é um crime patrimonial, mas contra o corpo feminino, contra a liberdade sexual (olha ela aí) e contra a dignidade feminina: as coisas não se resolvem com um salário mínimo.
Todos estes direitos fundamentais femininos, se esvaem ante uma única expectativa de direito (que pode ou não acontecer), a expectativa de direito à vida do nascituro concebido no ato criminoso.
Ocorre que o direito à vida não é absoluto, nenhum direito fundamental é. Devem ser ponderados em seus limites e sopesados. E é evidente que há uma desproporção: a retirada de tantos direitos fundamentais já consagrados, já incorporados por mais de seis décadas à dignidade humana feminina [à saúde física, mental e psíquica feminina, à liberdade sexual e reprodutiva] em detrimento de uma perspectiva do direito à vida em expectativa, concebido de ato criminoso – não exercido em liberdade sexual, reprodutiva, digna, etc., é negar a condição de ser humano digno à mulher; é relegá-la a uma espécie política inferior na ordem dos cidadãos. Retomando-se, ela se torna um meio, e não um fim em si mesma.
Alguém está sentindo uma desproporção na proteção entre um e outro? Grita a total ausência de proteção dos direitos fundamentais da mulher, que já falei. Acontece que não bastasse o fato de que não há direito absoluto (nem a vida), existe uma coisa chamada proibição de proteção deficiente; quer dizer que existe uma certa flexibilidade na proteção de direitos fundamentais, dependendo do momento histórico a lei pode prever um limite maior ou menor porque outro precisa elastecer seu limite, mas extingui-lo totalmente da forma como o Estatuto, jamais!
Não fosse isso, há uma antinomia jurídica. O Estatuto cria o bolsa-estupro, trata o estuprador como “genitor”, a mesma denominação atribuída à mãe. O que isso quer dizer? O estupro é um crime mais leve e menos aterrorizante apenas porque pode resultar num embrião? Os fatos que descrevem os crimes devem ser claros, objetivos, direitos quanto às situações que os configuram. Não pode existir uma lei posterior que coloque em dúvida o “quão criminoso configura um fato que define um crime”.
Da redação do PL, o estuprador se transmuda em genitor, será o provedor da criança e seu orgulhoso pai. Do campo do Direito Penal passa-se diretamente ao Direito de Família, e sem nenhum pudor – e com todo Poder – condena-se a vítima à eterna ligação ao estuprador, numa relação legalmente familiar. Filme de terror.
Há ainda uma incrível inovação, o art. 23 do Estatuto, que prevê o aborto culposo (involuntário). Parem as máquinas. Isso é muito sério. Negligência, imprudência e imperícia, são as situações em que um crime é culposo. Não sou penalista (mesmo), mas é quando você não quis fazer, mas fez assim, sabendo, sem querer. Significa que se você estava grávida e não sabia, e fez algo que por negligência causou o aborto, pode ter uma ficha criminal. Ou se você queria muito ter um filho, engravidou, mas foi descuidada um dia, pode responder por aborto. Ótimo, né?
Outra muito boa do Estatuto, com base neste mesmo art. 23 é que, se você estiver grávida, e concomitantemente com alguma doença, e deliberadamente fizer algum tratamento para se salvar, mas que puder trazer riscos para a saúde do feto, responderá uma ação penal certamente! Coisa de cidadãos livres e dignos, com direito à saúde! Acho mais fácil prepararem câmaras de gás, porque haja lenha pra tanta mulher.
O que me choca é o impacto desproporcional deste 'Projétil' de Lei, tão escancarado! Alguém visualizou um grupo, ou segmento de pessoas que serão desigualmente atingidas, ainda que “não intencionalmente” de outras? Vou ajudar: há possibilidade de algum homem ser criminalizado pela lei? Apenas as mulheres são atingidas, em qualquer e toda situação, sem exceção. Todas as mulheres em idade fértil são criminosas em potencial. Sintam o perigo. Até você, virgem, não saia de casa... ou saia? Não sei, ninguém sabe onde pode morar um agressor, e tristemente falo sério!
O Estatuto não foi deliberado na data prevista (em 08/05/13) pela Comissão de Finanças e Tributação em razão do encerramento dos trabalhos (questão de ordem), segundo o site da Câmara. Significa que será reinserido em pauta (não consta no site), sua tramitação é Ordinária, portanto há Projetos de Tramitação Especial e Urgente nesta Legislatura, que lhe precederão. Na última Legislatura a CFT entendeu que se faz necessária readequação orçamentária para aprovação. Se houver readequação e aprovado pela CFT segue para CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), a Comissão que analisa a constitucionalidade do Estatuto. Se esta Comissão entender pela constitucionalidade do Estatuto temo por nossas vidas, honestamente.
Referências:
BRASIL, STF. ADPF n. 54. Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Pleno. J. em 12.04.2012.
DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang. Et. al. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SARLET, Ingo Wolfang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris. Ano XXXII, n. 98. Jun/2005.
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