por Tággidi Ribeiro
Estive pensando recentemente em um dos argumentos mais usados pelos autointitulados "pró-vida" contra o aborto - o de que mulheres não 'precisam' abortar em nenhum caso, já que sempre podem entregar seus filhos para adoção. Essa 'alternativa' garantiria a vida do bebê e o seguimento tranquilo da vida da mãe, livre ao mesmo tempo dos fardos da maternidade e do 'assassinato'.
Aparentemente, essa solução é tão justa que nem é preciso falar sobre essa mãe, essa mulher que carregou durante nove meses um feto, que sentiu as contrações que anunciavam a chegada de mais um bebê ao mundo, que o segurou nos braços e o amamentou, antes de entregá-lo para uma história sobre a qual não terá mais controle algum e que, ainda assim, terá marcado para sempre. Ninguém fala, também, sobre como é o processo de entrega para adoção, e nem que esse modelo de mãe que dá o filho assim que nasce não é o único e nem o mais comum. Por fim, estrategicamente, os "pró-vida" omitem que mulheres que dão os filhos para adoção são ainda mais estigmatizadas que aquelas que efetivamente abortam.
Vê-se, portanto, que há muito a ser dito. Em primeiro lugar, gente, estar grávida já não é fácil quando se quer o bebê, quando se está feliz - lembrem-se de que a maioria das mulheres sente enjoos, sono, cansaço; seu corpo muda radicalmente; precisa ir toda hora ao banheiro porque o bebê pressiona a bexiga; tem dificuldade de andar, sentar, levantar e até de achar posição confortável para dormir; fora a instabilidade de humor. Agora, imaginem esses nove meses de gravidez de uma mulher que não está feliz e que não quer o filho. Imaginem passando por todos esses 'pequenos' desconfortos físicos e hormonais essa mulher que muitas vezes vai esconder da família que está grávida ou, na impossibilidade de fazê-lo, vai ser rechaçada diariamente; imaginem essa mulher que foi abandonada pelo pai da criança ou cujo pai é um estuprador - que pode ser, inclusive, alguém da própria família. Imaginem todos os dias dessa mulher não podendo querer seu próprio filho e profundamente culpada por essa impossibilidade.
Chega o dia do parto. Se esclarecida, essa mulher já informou ou vai informar as enfermeiras que pretende dar seu filho para a adoção. As enfermeiras, se esclarecidas, vão imediatamente comunicar o Conselho Tutelar, sem fazer julgamentos. Os psicólogos e assistentes sociais do Conselho Tutelar irão imediatamente recolher o recém-nascido a um abrigo, também sem fazer julgamentos. Mas haverá julgamentos, nós bem sabemos. Porque, como eu disse acima, os "pró-vida" tentam forjar uma aura de compaixão em torno do ato de dar o filho para adoção mas, cotidianamente, as mães que praticam esse ato de compaixão são consideradas monstros sem coração que tiveram a 'coragem', a 'capacidade' de rejeitar a 'maior dádiva' de uma mulher. Como a mulher é o que menos importa, muitos psicólogos e assistentes sociais pressionam pesadamente a mãe para que fique com seu filho, o que aumenta sua dor, sofrimento e culpa. Se a mulher for forte o suficiente para aguentar a pressão, pode ser que ela saia da maternidade carregando apenas o estigma e a culpa. Mas ela pode também sair carregando o filho que não quer e do qual não pode cuidar. Indo para um abrigo ou para a casa da mãe que a rejeita, essa criança está em uma situação de vulnerabilidade ímpar. Levando consigo ou não seu filho, essa mulher terá passado por uma das situações mais traumáticas de sua vida. Para que vocês tenham uma ideia do tamanho desse trauma, na segunda matéria linkada neste texto, a mãe que doa o filho se esteriliza como punição para seu ato.
É fácil perceber que a solução dada pelos "pró-vida" não é justa. Na verdade, talvez seja a mais injusta, pois que a pretexto de defender a vida do feto, não leva em consideração a vida da mãe e nem a vida da criança que o feto virá a ser. Se essa criança recém-nascida for branca, menina e saudável, muito facilmente achará alguém que a adote. Se for um menino negro e/ou tiver qualquer deficiência física ou de cognição, não terá tanta sorte. Chega a parecer obra de um cínico o seguinte texto de um entusiasta da adoção:
"(...) Enquanto a maioria esmagadora da fila de adotantes busca recém-nascidas, meninas e brancas, a fila de adotáveis é composta na sua maioria por crianças de mais de 3 anos de idade, negras (e na maioria meninos, já que as meninas são mais adotadas). Outro problema é que há muitos grupos de irmãos disponíveis e o ideal é não separá-los. Como 99% dos habilitados não tem disponibilidade de adotar irmãos, as filas não andam. Moral da história. O processo de adoção não é nenhum bicho-papão. É simples, barato e relativamente rápido, se comparado com qualquer outro processo no Brasil. Se o perfil de criança que você busca não é o padrão, ou seja, se você está interessado em adoção tardia, não tem exigência de raça, aceita grupos de irmãos, aceita doenças tratáveis (hiperatividade, dificuldade de fala tratável com fonoaudiologia, etc.), tudo isso vai impactar no tempo que seu processo vai demorar. Há casos que se encerram em poucas semanas ou meses. Tudo é possível se você sonhar com uma família especial." (http://www.epinion.com.br/adocao/mitos-e-realidades-sobre-o-processo-de-adocao)Quanto às mães, não tendo podido de fato escolher ou mesmo tendo escolhido levar sua gravidez adiante
"...sentem-se consternadas em datas de comemorações importantes, tem pesadelos com bebês sem rosto e apresentam dificuldade na elaboração do luto pela perda. Em sua maioria, conseguem em sua fantasia 'criar' os filhos em suas mentes e até mesmo fantasiar sobre o seu desenvolvimento, imaginando como estão, como vivem e o que sabem da sua história. Algumas não conseguem estabelecer novos relacionamentos, sentindo-se não merecedoras de amor e com frequência negam a si mesma qualquer forma de prazer ou alegria. Ainda que se casem e possuam novas famílias, a sombra do filho entregue em adoção estará sempre presente." (Daiane Oliveira e Cristina Kruel)
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Eu perguntei a deus. Ela é pró-escolha. |
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