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Claramente, não, o que se pode concluir pelo que se conhece da obra e da postura pública de Emicida, que não apresentam traços de apologia ao machismo. Isso pode ser fortalecido pelo texto de sua defesa contra as críticas recebidas, em que se coloca do mesmo lado das feministas (texto aqui). Isso, claro, não exime Emicida de machismo nesta canção, pois ele pode, mesmo sem intenção, ter construído uma canção machista, ou seja, que fortalece e incentiva ações machistas.

O interessante é discutir o primeiro argumento. Pra isso precisamos antes responder se é possível retratar a sociedade (ou ficcionalizar algum aspecto seu) sem "sujar as mãos", ou seja, de forma "isenta", "neutra", sem posicionar-se. Acredito que um "retrato" nunca é bem um retrato: a metáfora é enganadora, já que nem em uma foto se tem isenção de posição, intenção, foco. Uma reprodução "neutra" é uma forma camuflada de reproduzir o modus operandi dominante na sociedade que, sabemos, favorece alguns em detrimento de outros (no caso, o machismo é dominante e favorece homens). Portanto, ou você está fortalecendo o machismo ou o atacando. Ou você está fortalecendo a ordem-conservadora-dominante estabelecida ou está a atacando. Isso nem sempre é fácil de avaliar e distinguir em obras artísticas, principalmente em obras mais complexas (a escritora Hilda Hilst foi, e ainda é, criticada indevidamente por seus textos pornográficos, acusada, por exemplo, de incentivar a pedofilia em "O Caderno Rosa de Lori Lamby").
Emicida parece tentar se apoiar na idéia de que sua canção "Trepadeira" é uma ficção que retrata uma situação comum... tenta fortalecer ainda mais seu argumento quando diz que a história retratada pela "Trepadeira" está equilibrada com o retrato do "Vacilão", feito em outra música, onde um homem é criticado por ter "vacilado" com sua namorada que o abandona, e sofre por isso. Assim teria mostrado os dois lados da moeda. Difícil falar em dois lados, quando um deles, o da mulher, é claramente massacrado. Aliás, se seguirmos o que o próprio Emicida sugere, de narrativas complementares-opostas, teríamos em "Vacilão" o homem-errado ("vacilão"), a mulher-certa; logo, em "Trepadeira", o homem-certo, a mulher-errada ("trepadeira, biscate"), o que reforça a associação machista de que a mulher não deve ser dona do seu corpo, mas submissa. Buenas, se comparamos as letras de "Trepadeira" e "Vacilão" (clique aqui para ler a letra) vemos que apenas em "Trepadeira" aparece a violência contra uma das partes (no caso, contra a mulher). Se Emicida respondesse a isso dizendo que assim é porque assim ocorre na sociedade; que está apenas retratando como um homem e uma mulher reagem a uma situação semelhante, estaria assumindo a idéia furada já abordada acima do "retrato neutro" e, assim, estaria naturalizando a violência contra a mulher. Uma outra possibilidade de resposta é a de que haveria uma crítica embutida à postura do narrador-personagem em "Trepadeira".

bobão-chorão-ciumento que não consegue lidar com uma mulher que faz o que quer com seu corpo. Logo, a canção estaria depreciando figuras como a dele. Acho, claro, uma leitura possível, apesar de pouco provável pela forma como a narrativa é construída... pra mim, entre negativas e positivas, o narrador claramente ganha a parada, há uma empatia criada que leva o ouvinte (homens e mulheres criad@s em uma cultura machista e sem questionamento crítico sobre o tema) a ficar do lado do narrador-personagem e entender como "justa" ou "justificável" a sua intenção de violência contra a mulher ("é, ela merece mesmo uma surra", "biscate"). Logo, pra mim, a música é sim machista e, Emicida, o vacilão da vez. Isso não significa que toda a obra do Emicida seja machista, nem que ele seja um apologista do machismo. Importante acompanharmos como ele reage às críticas apontadas e como isso repercute em sua postura e obra daqui em diante.
Aliás, é importante salientar que, em termos de música machista, Emicida tem razão ao dizer que existem outros importantes e fundamentais alvos que precisam receber a devida crítica: grupos musicais que se constróem fundamentados no machismo e que são impulsionados, justamente por isso, por grandes gravadoras e atingem milhões de pessoas. O fato de haver outros alvos-machistas, talvez maiores e mais importantes na luta feminista, não implica que não se deva criticar o Emicida ou qualquer outro que fizer música machista, seja Lupcínio Rodrigues (em "Braza": "Toda vez que eu chego em casa, desce logo uma explosão/ Ciúme de mim, não acredito!/ Pois meu bem, não é com grito que se prende um coração/ Desculpe a minha pergunta, mas quem tanta asneira junta lhe ensinou a me falar/ Seu professor bem podia ensinar que não devia deste modo me tratar. Isso é um soco, não é nem um tapa..."), seja João Bosco e Aldir Blanc (em "Gol Anulado": "Quando você gritou 'Mengo', no segundo gol do Zico tirei sem pensar o cinto e bati até cansar"). Liberdade poética, lamento informar, tem sim limites (e há tantos outros, limites conservadores e machistas a se quebrar!)

Pra fechar, um poema muito bom que foi publicado no "Feminismo sem demagogia" (clique aqui) em resposta ao poema de defesa que o Emicida vem declamando antes de cantar a música "Trepadeira" em seus shows. No poema, Emicida vai mostrando como defende a mulher em outras canções e como acredita que as mulheres devem ser livres pra serem o que quiserem, inclusive "trepadeiras". Eis aqui a resposta poética e política de uma mulher:
Ouvi teu poema com som de canção
Mas esta melodia não alivia meu coração
Não adianta dizer que disse outrora
Se o que me maltrata é o que cantas agora.
Eu, assim como todas as mulheres, como você diz
Mereço respeito, mereço uma vida feliz
Por que cantastes então censurando nossa liberdade
Vestindo de macho recalcado seu personagem?
Por que cantas que merecemos apanhar ? Me diz?
Por que cantas que merecemos ser envenenadas?
Por que cantas que a mulher livre merece ser depreciada?
Por que cantas se não acredita nesta moral infeliz?
Não me venha com poeminha cheio de demagogia,
Discurso bonito? Qualquer um pode fazer sobre a laje fria.
O homem que nos romanceia, é o mesmo que nos mata,
Queremos respeito, não suas rimas dissimuladas.
Disseste que tens o direito de cantar sobre o quiser…
Cantas! Grite ao mundo todo teu direito de oprimir!
Deslize em suas melodias a opressão contra a mulher,
Só não tente com hipocrisia do que cantas se redimir.
(Texto de Jeff Vasques)
Aproveitando o texto da semana passada sobre a luta contra a "dependência afetiva" a que a mulher é """educada""", trago uma música muito interessante do Dylan e que fica ainda mais interessante na voz de Joan Baez (pela qual sou completamente apaixonado, me permitam a declaração).
Joan Chandos Baez nasceu em 9 de janeiro de 1941, em Staten Island, Nova Iorque, Estados Unidos. É considerada uma das maiores cantoras folk do mundo. Ativista, é também considerada uma das pessoas chave do movimento de protesto dos anos 60, ao lado de Bob Dylan, com quem foi "casada". Ambos participaram da marcha ao lado de Martin Luther King em Washington, 1963. Seus grandes sucessos foram compostos por Dylan especialmente para ela, desde 1961. Dona de uma voz poderosa, doce e extremamente afinada, seus sucessos sempre foram voltados para as canções politizadas. Nos anos 60 começou a misturar ritmos e sons latinos ao seu trabalho. Filha de mexicanos, Joan sempre se interessou pela musicalidade dos ritmos folclóricos da América Latina, chegando a participar de concertos e discos com Mercedes Sosa.
NÃO SOU EU, BABY
(Bob Dylan, na voz de Joan Baez)
Vá embora pela minha janela
Vá embora na velocidade que você quiser
Não sou quem você quer, baby
Não sou quem você precisa.
Você diz que está procurando por alguém
Que nunca seja fraco, mas sempre forte
Para proteger e defender você
Sempre que você esteja errada ou certa
Alguém para abrir toda e qualquer porta.
Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.
Vá calmamente do abismo, baby
Vá calmamente pelo chão
Não sou quem você quer, baby
Eu vou sempre te decepcionar.
Você diz que está procurando por alguém
Que prometa nunca partir
Alguém que feche seus próprio olhos por você
Alguém que feche seu coração
Alguém que morra por você e mais.
Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.
Vá fundir-se novamente à noite, baby,
Tudo aqui dentro é feito de pedra.
Não há nada se movendo aqui
E, mesmo assim, eu não estou sozinho.
Você diz que está procurando por alguém
Que vá te segurar cada vez que você cair,
Que vá te dar flores constantemente
E que virá sempre que você chamar,
Um amor pra sua vida e nada mais.
Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.
It Ain’t Me, Babe
(Bob Dylan)
Go ’way from my window
Leave at your own chosen speed
I’m not the one you want, babe
I’m not the one you need
You say you’re lookin’ for someone
Never weak but always strong
To protect you an’ defend you
Whether you are right or wrong
Someone to open each and every door
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe
Go lightly from the ledge, babe
Go lightly on the ground
I’m not the one you want, babe
I will only let you down
You say you’re lookin’ for someone
Who will promise never to part
Someone to close his eyes for you
Someone to close his heart
Someone who will die for you an’ more
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe
Go melt back into the night, babe
Everything inside is made of stone
There’s nothing in here moving
An’ anyway I’m not alone
You say you’re lookin’ for someone
Who’ll pick you up each time you fall
To gather flowers constantly
An’ to come each time you call
A lover for your life an’ nothing more
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe
(texto e tradução de Jeff Vasques)
Hoje, no Versos e Subversas, faço o cruzamento de poesias de duas grandes intelectuais e artistas (Rosário Castellanos e Idea Vilariño) para discutir um pouco da """educação""" afetiva das mulheres, a construção e imposição de sua dependência emocional e sua vulnerabilidade ao amor fatalista.
MEDITAÇÃO NO UMBRAL
(Rosário Castellanos, México, 1926-1974)
Não, não é a solução
atirar-se debaixo de um trem como a Ana de Tolstoy
nem consumir o arsênico de Madame Bovary
nem aguardar na planície solitária de Ávila a visita
do anjo com a flecha
antes de amarrar o manto à cabeça
e começar a atuar.
Nem concluir as leis geométricas, contando
as vigas da cela de castigo
como o fez Sor Juana. Não é a solução
escrever, enquanto chegam as visitas,
na sala de estar da família Austen
nem fechar-se no ático
de alguma residência da Nova Inglaterra
e sonhar, com a Bíblia dos Dickinson,
debaixo de uma almofada de solteira.
Deve haver outro modo que não se chame
Safoni Mesalina nem María Egipcíaca
nem Madalena nem Clemencia Isaura.
Outro modo de ser humano e livre.
Outro modo de ser.
Neste primeiro poema, Rosário Castellanos busca repetidamente negar a vida de submissão e de condeanação trágica a que estão submetidas as mulheres: seja pela opressão social direta dos homens sobre sua liberdade de ação seja pelas saídas desesperadas a que se lançam as mulheres dominadas por amores fatais. Ela nega as figuras típicas da subjetividade feminina na literatura e também um ou outro caso real, como a de Sor Juana, religiosa católica e poetisa, considerada a primeira feminista das Américas. São meditações que Rosário realiza sobre o destino das mulheres, seu fim, sobre o tipo de vida e morte que, em geral, têm ("meditação no umbral") e dialoga com sua própria experiência concreta: é público seu enorme sofrimento decorrente de suas relações amorosas conflituosas com o "don juan" Ricardo Guerra, que a mal tratava e a traiu diversas vezes. Essa situação conduziu Rosário à depressão, à hospitais psiquiátricos e tentativas de suicídio. É justamente contra este fim trágico, e que parece inevitável às mulheres, que se rebela Rosário.
(Idea Vilariño, Uruguai, 1920-2009)
Hoje que o tempo já passou,
hoje que já passou a vida,
hoje que me rio se penso,
hoje que esqueci aqueles dias,
não sei porque me desperto
algumas noites vazias
ouvindo uma voz que canta
e que, talvez, é a minha.
Quisera morrer — agora— de amor,
para que soubesses
como e quanto te queria,
quisera morrer, quisera… de amor,
para que soubesses…
Algumas noites de paz,
— se é que as há todavia—
passando como sem mim
por essas ruas vazias,
entre a sombra estreita
e um triste odor de glicínias,
escuto uma voz que canta
e que, talvez, é a minha.
Quisera morrer — agora — de amor,
para que soubesses
como e quanto te quería;
quisera morrer, quisera… de amor, para que soubesses…
Idea Vilariño, neste outro poema, expõe a típica imagem do ser "morto de amor" ou que deseja "morrer de amor": a incompletude e o vazio de sua vida sem o homem amado e a anulação de sua subjetividade evidente pelo desejo de morte. Assim como no caso de Rosário, é público o relacionamento conturbado de Idea com o grande escritor uruguai Carlos Onetti... Idea sempre o amou incondicionalmente e por isso sofreu terrivelmente, já que Onetti parecia oscilar em seus interesses com Idea, desenvolvendo um jogo de aproximações e desprezo regular. Idea se questionava por que sempre voltava a Onetti, o "burro, cachorro, besta" a quem dedicou todos seus poemas de amor. Por que o procurava mesmo depois das mais terríveis brigas? Idea, aparentemente, nunca conseguiu dar uma resposta clara a essa pergunta. Ironicamente, foi através de seus poemas de amor que, em geral, retratam seu sofrimento e anulação, que Vilariño se tornou conhecida. Impressionante ver como mesmo a raiva não tem lugar em seus poemas, a não ser uma raiva "fria", que se mostra indiretamente como no poema abaixo no desejo de morte do amante.
TE ESTOU CHAMANDO
(Idea Vilariño, Uruguai, 1920-2009)
Amor
desde a sombra
desde a dor
amor
te estou chamando
desde o poço asfixiante das recordações
sem nada que me sirva nem te espere.
Te estou chamando
amor
como ao destino
como ao sonho
à paz
te estou chamando
com a voz
com o corpo
com a vida
com tudo o que tenho
e que não tenho
com desesperação
com sede
com pranto
como se fosses ar
e eu me afogasse
como se fosses luz
e eu morresse.
Desde uma noite cega
desde o olvido
desde horas fechadas
no solo
sem lágrimas nem amor
te estou chamando
como a morte
amor
como a morte.
Tanto Rosário como Idea foram das maiores intelectuais de seu tempo, mulheres engajadas e lutadoras e que, mesmo assim, enfrentaram enormes conflitos internos, profundas contradições em suas relações afetivas. Isto porque uma sociedade machista as educou (e ainda educa as mulheres) para a dependência afetiva, para a aceitação do amor fatal como modelo, para a anulação de sua subjetividade, para que esta se veja como frágil, incapaz ou pouco capaz de realizar diversas atividades "próprias" dos homens, emocionalmente devotadas a um só grande amor (a um só grande homem) e, portanto, tendendo a estabelecer uma relação com o sexo menos livre. Não é preciso pensar muito pra perceber que isso forja uma mulher com baixa auto-estima, totalmente ou em-grande-medida incapaz de estar sozinha e de fazer escolhas mais livres acerca de seus amores e relacionamentos.
Essa é a contradição profunda que as duas poetas enfrentaram com as armas de que dispunham: sua arte e sua luta concreta para transformar a sociedade. Acredito que ao espelhar em poesia seus sentimentos de submissão ou de amor trágico buscavam, de alguma forma, romper com esse ciclo, seja pelo questionamento direto (como em Rosário, ainda que sem encontrar possibilidades claras de saída), seja pela exposição nua e crua, mas profundamente elaborada, de seu sofrimento (como nos poemas de Idea). Dar palavras a esses sentimentos, transformar a opressão em poesia já é enfrentar a opressão íntima (socialmente construída), é se ver no espelho e permitir que outras também se vejam. E isso não é pouco. Mais do que expor as "fragilidades" de duas poetas, o intuito deste post, pelo contrário, é evidenciar a grandeza de suas lutas, a força de Rosário Castellanos e Idea Vilariño.
A luta feminista é profunda: deve não só enfrentar os casos mais cotidianos (e por isso mesmo terríveis) de violência contra as mulheres, mas também os aprisionamentos mais sutis da afetividade e da sexualidade feminina, libertando não só as mulheres de sua condicionada "fragilidade" e dependência afetiva, mas também auxiliando os homens a se libertarem de seu canalhesco don juanismo.
(Texto e traduções de Jeff Vasques)
NASCER HOMEM
(Adela Zamudio)
Quanto trabalho ela tem
pra corrigir a torpeza
de seu esposo, mas na casa,
(permita-me o assombro)
tão inepto como fátuo
segue ele sendo a cabeça,
porque é homem.
Se alguns versos escreve
-“De alguém esses versos são
que ela só os subscreve”;
(permita-me o assombro)
Se esse alguém não é poeta
por que tal suposição?
-Porque é homem.
Uma mulher superior
em eleições não vota,
e vota o sacana pior;
(permita-me o assombro)
Com só saber assinar
pode um idiota votar,
porque é homem.
Ele se abate e bebe ou joga
em um revés da sorte;
ela sofre, luta e roga;
(permita-me o assombro).
Ela se chama “ser débil”,
e ele se apelida “ser forte”
porque é homem.
Ela deve perdoar
se seu esposo lhe é infiel;
mas, ele pode se vingar;
(permita-me o assombro)
em um caso semelhante
até pode ele matar,
porque é homem.
Oh, mortal!
Oh mortal privilegiado,
que de perfeito e honesto
goza seguro renome!
Para você que basta?
Nascer homem.
(tradução de Jeff Vasques)
Adela, já como professora, desenvolve uma fecunda atividade pedagógica buscando eliminar as travas reacionárias que conduziam a educação das jovens bolivianas. Em sua defesa dos direitos das mulheres de receber boa educação, Adela Zamudio clamava a necessidade de introduzir o laicismo nos programas acadêmicos nacionais, lançando algumas propostas audazes para sua época, como a instauração do matrimônio civil, o direito ao divórcio e à separação dos poderes da igreja católica e do Estado. Impulsionou o ensino gratuito e laico, denunciou fortemente o ‘primitivismo patriarcal’ da sociedade e a exploração e dominação dominante. Adela Zamudio contribuiu com todos seus esforços para a formação do pensamento feminista na Bolívia: em 1921 aparece em Oruro o primeiro número da revista "Feminiflor", dirigida e escrita por mulheres que fortaleciam o ideal da liberação feminina; e, em 1923, se constituiu em La Paz a primeira organização autônoma de mulheres que lutou pelos seus direitos políticos, o "Ateneo Feminino". Por esse período, as mulheres se incorporavam ao movimento sindical, com sindicatos própios e com a Federação Operária Feminina.
Adela Zamudio forma parte da primeira geração de autoras hispânicas do período modernista que resistem à estética vigente. São autoras que apelaram em seus escritos a um projeto de autenticidade tanto pessoal e político como estético que desarticulava a visão estereotipada que se projetava da mulher no cânone socioliterário. Em Zamudio se encontra a prioridade dada a um compromisso íntegro com a realidade boliviana de seu tempo, denunciando o sistema em curso. Assim, Adela levou adiante seu projeto de legitimação e fortalecimento da mulher. Lydia Parada de Brown considera que "esta escritora boliviana foi uma das maiores da América, mas lamentavelmente não alcançou a fama de Gabriela Mistral, ou de Juana de Ibarbourou". O poema que traduzi acima é um de seus poemas mais famosos.
Geir Campos (Brasil, 1924-1999) foi piloto da marinha, professor de ginásio e universitário, radialista, jornalista, editor, contista, poeta e tradutor (traduziu Rilke, Brecht, Kafka, Herman Hesse, Walt Whitman, Shakespeare e Sófocles). Foi chamado de “habilíssimo artista” por Manuel Bandeira. Foi um dos organizadores, com Moacyr Félix, dos Cadernos do povo brasileiro, Violão de rua, editados em 1962 pelo CPC da UNE e Civilização Brasileira. O poeta esteve sempre engajado nas lutas de seu tempo.
Em 1951, Geir Campos criou, em Niterói, com o poeta Thiago de Melo, as Edições Hipocampo. A iniciativa se insere num dos momentos mais significativos da história das artes gráficas do país. As Edições Hipocampo foram um empreendimento nascido do amor à poesia e às artes gráficas. Os livros eram compostos tipograficamente e diagramados pelos próprios editores, numa gráfica de fundo de quintal.
O que traz Geir às páginas do "Subvertidas" é um conjunto de seus poemas chamados “Cantigas para Acordar Mulher” (do livro de mesmo nome). É impressionante observar um homem se preocupando com a condição da mulher no Brasil de 1964. E mais interessante ainda é aparecer uma auto-crítica na "8a Cantiga de Acordar Mulher" em que aponta o machismo também na esquerda! O conjunto como um todo, das cantigas, soa muito potente. Abaixo, selecionei as melhores.
3ª CANTIGA DE ACORDAR MULHER
Das vozes que te embalavam
a esperança de menina
moça
guardaste mais, de tanto repisadas,
as perfumadas lições
da nobre arte de agarrar um homem.
De como te fazeres desejada,
amada porventura,
tudo aprendeste: os gestos, os meneios,
a graça de sorrir e de calar.
Hoje tens o teu homem
disposto a desdobrar-se em pão e vinho
para apagar tua fome.
por isso, que lhe hás de dar:
o trigo de tua pele, as uvas de tua boca?
Se sem a ponte do amor, tua lavoura é tão pouca...
Acorda: onde estão as vozes que te ensinaram a amar?
4ª CANTIGA DE ACORDAR MULHER
Bom é sorrires, olhar
em mim: não vês
o inimigo, o rival
jamais.
Na caça, não serás
a presa; não serás,
no jogo, a prenda.
Partilharemos, sem meias
medidas,
a espera, o arroubo, o gesto,
o salto, o pouso e o sono
e o gosto desse rir
dentro e fora do tempo
sempre que nova
mente
acordares
7ª CANTIGA DE ACORDAR MULHER
Se te chamarem flor
toma cuidado:
vê se não é gente que te quer por
numa redoma – lindo objeto – a vegetar
alheia a tempo e lugar!
Se te chamarem flor,
acorda e toma cuidado:
olha que te levam para o mesmo lado
de tanto destino mal-aventurado!
8a. CANTIGA DE ACORDAR MULHER
Vozes da esquerda, surdas,
e vozes da direita, afinadíssimas,
hão de louvar-te a arte
de ser mulher:
mansa como uma ovelha,
jeitosa como uma gata de luxo,
dócil e generosa como uma árvore
a se multiplicar em sombra e frutos,
como uma estátua impassível,
hábil de acordo com as conveniências,
e acima disso
crente em ser esse o teu ideal de vida…
Acorda: pois foi essa
a sorte que escolheste?
9a. CANTIGA DE ACORDAR MULHER
Um dia te acharás
sem inteirar a casa:
ouvirás o marido ressonando,
os filhos dormindo em calma…
O espelho te acenará,
te lembrará coisas da mocidade,
coisas da meninice,
te mostrará vindas algumas rugas;
contemplarás o espelho,
o quarto, a casa;
perguntarás por ti mesma,
pelo teu próprio destino
— e o espelho fará silêncio:
será o sinal de estares acordando.
No "Versos e Subversas" desta semana, divulgo uma poesia muito boa que vem circulando pela internet, certamente de alguma brava lutadora feminista:
SEJAMOS PUTAS!
(autora desconhecida)
Se você sai com um cara e transa com ele na primeira noite:
"Essa Puta é uma fácil"
Se você sai com um cara e não transa com ele na primeira noite:
"Essa Puta se faz de difícil"
Se você prefere roupas mais curtas:
"Essa Puta é uma exibida"
Se você prefere roupas mais longas:
"Essa Puta é uma hipócrita se finge de santa"
Se você gosta de beber:
"Essa Puta é uma bêbada, ridícula, sem moral"
Se você não gosta de beber
"Essa Puta é totalmente careta"
Se você gosta de falar de sexo
"Essa Puta é vulgar demais"
Se você não gosta de falar de sexo
"Essa Puta só pode ser frígida"
Se você fala palavrão
"Essa Puta não tem educação"
Se você não fala palavrão
"Essa Puta é metida a certinha"
Se você trabalha fora
"Essa Puta não cuida da casa, do marido. Depois reclama se ele acha quem cuide"
Se você não trabalha fora
"Essa Puta é uma mercenária, fica coçando o dia inteiro, vive às custas do marido"
Se você não quer se casar
"Essa Puta só quer saber de dar pra todo mundo"
Se você sofre violência doméstica e não denuncia
"Essa Puta só pode gostar de apanhar"
Se você sofre violência doméstica e denuncia
"Essa Puta deve ter feito alguma coisa pra merecer, e agora ferra a vida do coitado"
Se seu companheiro está num relacionamento extra-conjugal
"Essa Puta não dá em casa, ele procura na rua"
Se é você em um relacionamento extra-conjugal
"Essa Puta paga com um par de chifres tudo que o coitado faz por ela"
Se você não tem condições, engravida e resolve ter o filho
"Essa Puta não se cuidou e agora põe mais um inocente pra sofrer no mundo"
Se você não tem condições, engravida e resolve abortar
"Essa Puta não se cuidou e agora quer tirar a vida do inocente"
Essa Puta
Essa Puta
Puta
Puta
Puta
Puta...
V
fará poesia com sua vida,
VII
e dar a vida, se necessário.
reconhecerá meu rosto na trincheira
enquanto os dois disparam juntos
contra o inimigo.
nem terá medo de se descobrir ante a magia da paixão
em uma praça cheia de multidões.
Poderá gritar - te amo -
ou colocar placas no alto dos edifícios
proclamando seu direito de sentir
o mais lindo e humano dos sentimentos.
X
nem das fraldas do filho,
será como um vento fresco
levando consigo, entre nuvens de sonho e de passado,
as fraquezas que, durante séculos, nos mantiveram separados
como seres de distintas estaturas.
me dará ar, espaço,
alimento para crescer e ser melhor,
como uma Revolução
que faz de cada dia
o começo de uma nova vitória.
aquelas que eu podia ter sido;
as mulheres primorosas,
modelo de virtudes,
contra elas
odeio suas ameaças em meu corpo
me inspiram;
às escondidas do marido
o pudor da nudez, por baixo da passada e engomada
roupa íntima.
levantam um dedo acusador
e, às vezes, cedo a seus olhares de reprimenda
e gostaria de ter a aceitação universal,
ser a “boa menina”, a “mulher decente”
a impecável Gioconda,
tirar dez em conduta
com o partido, o estado, as amizades,
minha família, meus filhos e todos os demais seres
que, abundantes, povoam este nosso mundo.
Nesta contradição invisível
entre o que deveria ter sido e o que é
travei numerosas batalhas mortais,
batalhas inúteis delas contra mim
- elas contra mim que sou eu mesma -
Com a “psique dolorida” despenteio-me
transgredindo ancestrais programações
desgarrando-me das mulheres internas
que, desde a infância, torcem o rosto para mim
pois não me encaixo no molde perfeito de seus sonhos,
pois me atrevo a ser esta louca falível, terna e vulnerável
que se apaixona feito puta triste
por causas justas, homens bonitos e palavras brincalhonas
pois, já adulta, atrevi-me a viver a infância proibida,
e fiz amor sobre escrivaninhas em horários comerciais
e rompi laços invioláveis e me atrevi a desfrutar
o corpo são e sinuoso com que os genes
de todos os meus ancestrais me dotaram.
Porém, nos poços escuros em que me afundo;
nas manhãs em que, ao entreabrir os olhos,
sinto as lágrimas fazerem força
apesar da felicidade
que finalmente conquistei
rompendo estratos e camadas de rocha terciária
e quaternária,
vejo minhas outras mulheres sentadas no vestíbulo
fitando-me com olhos doídos
e me culpe pela felicidade.
contra esta mulher
feita
plena
esta mulher de peitos em peito
e largos quadris
que, por minha mãe e contra ela,
eu gosto de ser.