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A leitora Alexandra Duarte nos presenteia hoje com suas reflexões a respeito de Jane Austen e feminismo. E vocês leitores, o que acham desta perspectiva?

O artigo está disponível para download, basta clicar na imagem abaixo.

 

Hoje, 20 de novembro, acontecerá a apresentação de dois trabalhos de pesquisa realizados por esta que vos escreve, Adriana Zardini e o amigo Amilcar Santos. O evento faz parte do IV Simpósio Internacional de Letras e Linguística e XIV Simpósio Nacional de Letras e Linguística, realizado na Universidade Federal de Uberlândia.



LT: Representações femininas no romance histórico
Local: Bloco 5S - Sala 5S 106

Dia 20 das 14:00 às 14:20
A identidade feminina na obra ‘Orgulho e Preconceito’ de Jane Austen - Adriana Sales
Zardini

Dia 20 das 14:20 às 14:40
Aurélia Camargo e Elizabeth Bennet: um diálogo entre protagonistas femininas de José de
Alencar & Jane Austen - Amilcar Figueiroa Peres dos Santos


No dia 22, às 19 horas, será a vez de Amanda Chieregatti, apresentar um poster a respeito do feminismo na obra de Austen, tema recorrente dos meus últimos trabalhos. O tema do poster da Amanda é: A paratopia criadora de Jane Austen: uma autora feminista?

Conheça um pouco sobre esta pesquisa de Amanda, aqui.



Neste Versos e Subversas, vou abordar a "polêmica" acerca do machismo presente na música "Trepadeira" do Emicida, fonte de críticas  e atos contra o femicídio incentivado pelas produções culturais. A foto ao lado retrata parte do ato realizado recentemente numa apresenteção do Emicida, organizado e convocado pelas "Trepadeiras" (clique aqui para ler a convocatória!). Para seguir lendo o texto é importante conhecer a música... se não conhece clique aqui para ler a letra da música. Não há dúvida de que o personagem-narrador da música (o "eu lírico") tem posturas machistas, as mais óbvias: depreciação da mulher que faz o que quer com seu corpo ("biscate", "trepadeira"...); ameaça de violência contra ela justamente por fazer o que quer com seu corpo e desejo ("Merece era uma surra de espada de São Jorge / um chá de comigo ninguém pode"). A questão é saber se pode-se transpor essa postura do "eu lírico" pro autor da canção, Emicida. Uma primeira pergunta, para nos localizarmos, seria: Emicida fez essa canção para deliberadamente estimular posturas machistas como a do personagem-narrador?

Claramente, não, o que se pode concluir pelo que se conhece da obra e da postura pública de Emicida, que não apresentam traços de apologia ao machismo. Isso pode ser fortalecido pelo texto de sua defesa contra as críticas recebidas, em que se coloca do mesmo lado das feministas (texto aqui). Isso, claro, não exime Emicida de machismo nesta canção, pois ele pode, mesmo sem intenção, ter construído uma canção machista, ou seja, que  fortalece e incentiva ações machistas.



O principal argumento de Emicida em sua defesa é que se trata de um retrato ficcional de um cara com dor de cotovelo (e, infiro, com as consequentes reações violentas). Retrato similar e inverso, defende ele, ao que fez em outra canção ("Vacilão"): um mulherengo que sofre porque a sua namorada o abandona por vacilar (ficar com outras mulheres, trair). Em um segundo argumento, aponta que muitos outros compositores, como Lupcínio Rodrigues, em suas canções de "dor de cotovelo" fizeram o mesmo: retratos dessas situações e reações.

O primeiro argumento merece discussão. O segundo não o isenta, já que Lupcínio, como muitos outros sambistas e compositores, pode também ter criado (e criou!) canções machistas de dor de cotovelo. Li algumas análises de "Trepadeira" que afirmam que a violência da postura do personagem-narrador "é própria da dor de cotovelo, não é machismo". Bom, é importante verificar a quantidade/qualidade de agressões geradas pelo ciúmes e possessividade de homens e mulheres. Acredito que não preciso recorrer a estatísticas oficiais para convencê-los de que o ciúmes do homem fere e mata muuuuuito mais do que o das mulheres, certo? Qualquer busca simples sobre o tema no google vai te mostrar estatísticas assustadoras (só pra citar, estudo publicado ontem - 24/09 - na Folha, aponta que 80% dos familicídios são praticados por homens, imagine agora as estatísticas dos assassinatos envolvendo apenas as mulheres, sem os filhos!!! Link aqui). Sim, a "dor de cotovelo" está tingida toda de machismo e mancha a mão dos homens com o sangue das mulheres. E o próprio machismo retroalimenta e amplifica o raio de ação do "ciumento", já que o homem se sente no direito de controlar a mulher em praticamente todos os aspectos de sua vida e não aceita ser controlado, ou aceita de forma específica e tópica (e quando a mulher o tenta controlar, é tida como "louca", "histérica").

O interessante é discutir o primeiro argumento. Pra isso precisamos antes responder se é possível retratar a sociedade (ou ficcionalizar algum aspecto seu) sem "sujar as mãos", ou seja, de forma "isenta", "neutra", sem posicionar-se. Acredito que um "retrato" nunca é bem um retrato: a metáfora é enganadora, já que nem em uma foto se tem isenção de posição, intenção, foco. Uma reprodução "neutra" é uma forma camuflada de  reproduzir o modus operandi dominante na sociedade que, sabemos, favorece alguns em detrimento de outros (no caso, o machismo é dominante e favorece homens). Portanto, ou você está fortalecendo o machismo ou o atacando. Ou você está fortalecendo a ordem-conservadora-dominante estabelecida ou está a atacando. Isso nem sempre é fácil de avaliar e distinguir em obras artísticas, principalmente em obras mais complexas (a escritora Hilda Hilst foi, e ainda é, criticada indevidamente por seus textos pornográficos, acusada, por exemplo, de incentivar a pedofilia em "O Caderno Rosa de Lori Lamby").


Emicida parece tentar se apoiar na idéia de que sua canção "Trepadeira" é uma ficção que retrata uma situação comum... tenta fortalecer ainda mais seu argumento quando diz que a história retratada pela "Trepadeira" está equilibrada com o retrato do "Vacilão", feito em outra música, onde um homem é criticado por ter "vacilado" com sua namorada que o abandona, e sofre por isso. Assim teria mostrado os dois lados da moeda. Difícil falar em dois lados, quando um deles, o da mulher, é claramente massacrado. Aliás, se seguirmos o que o próprio Emicida sugere, de narrativas complementares-opostas, teríamos em "Vacilão" o homem-errado ("vacilão"), a mulher-certa; logo, em "Trepadeira", o homem-certo, a mulher-errada ("trepadeira, biscate"), o que reforça a associação machista de que a mulher não deve ser dona do seu corpo, mas submissa. Buenas, se comparamos as letras de "Trepadeira" e "Vacilão" (clique aqui para ler a letra) vemos que apenas em "Trepadeira" aparece a violência contra uma das partes (no caso, contra a mulher). Se Emicida respondesse a isso dizendo que assim é porque assim ocorre na sociedade; que está apenas retratando como um homem e uma mulher reagem a uma situação semelhante, estaria assumindo a idéia furada já abordada acima do "retrato neutro" e, assim, estaria naturalizando a violência contra a mulher. Uma outra possibilidade de resposta é a de que haveria uma crítica embutida à postura do narrador-personagem em "Trepadeira". 

Justamente, vi algumas análises de "Trepadeira" na internet que lêem o personagem-narrador como um
bobão-chorão-ciumento que não consegue lidar com uma mulher que faz o que quer com seu corpo. Logo, a canção estaria depreciando figuras como a dele. Acho, claro, uma leitura possível, apesar de pouco provável pela forma como a narrativa é construída... pra mim, entre negativas e positivas, o narrador claramente ganha a parada, há uma empatia criada que leva o ouvinte (homens e mulheres criad@s em uma cultura machista e sem questionamento crítico sobre o tema) a ficar do lado do narrador-personagem e entender como "justa" ou "justificável" a sua intenção de violência contra a mulher ("é, ela merece mesmo uma surra", "biscate"). Logo, pra mim, a música é sim machista e, Emicida, o vacilão da vez. Isso não significa que toda a obra do Emicida seja machista, nem que ele seja um apologista do machismo. Importante acompanharmos como ele reage às críticas apontadas e como isso repercute em sua postura e obra daqui em diante.

Aliás, é importante salientar que, em termos de música machista, Emicida tem razão ao dizer que existem outros importantes e fundamentais alvos que precisam receber a devida crítica: grupos musicais que se constróem fundamentados no machismo e que são impulsionados, justamente por isso, por grandes gravadoras e atingem milhões de pessoas. O fato de haver outros alvos-machistas, talvez maiores e mais importantes na luta feminista, não implica que não se deva criticar o Emicida ou qualquer outro que fizer música machista, seja Lupcínio Rodrigues (em "Braza": "Toda vez que eu chego em casa, desce logo uma explosão/ Ciúme de mim, não acredito!/ Pois meu bem, não é com grito que se prende um coração/ Desculpe a minha pergunta, mas quem tanta asneira junta lhe ensinou a me falar/ Seu professor bem podia ensinar que não devia deste modo me tratar. Isso é um soco, não é nem um tapa..."), seja João Bosco e Aldir Blanc (em "Gol Anulado": "Quando você gritou 'Mengo', no segundo gol do Zico tirei sem pensar o cinto e bati até cansar"). Liberdade poética, lamento informar, tem sim limites (e há tantos outros, limites conservadores e machistas a se quebrar!)

Queria ainda ressaltar algo que me parece óbvio, mas sei que pode não ser para muitos: não se deve inferir do fato de alguém transar com várias pessoas nada além de que ela quer transar com várias pessoas. Talvez a "trepadeira" da música amasse o narrador e queria transar com outros. Talvez ela amasse o narrador e outros. Talvez ela não o amasse e apenas queria transar com ele. Homens precisam aprender a receber o "não" e aceitar o "sim" não exclusivo. Amor e sexo, eu sei, possuem em nossa sociedade um relação tensa, tristemente muito (mas muito!) mais tensa para mulheres do que para homens.

Pra fechar, um poema muito bom que foi publicado no "Feminismo sem demagogia" (clique aqui) em resposta ao poema de defesa que o Emicida vem declamando antes de cantar a música "Trepadeira" em seus shows. No poema, Emicida vai mostrando como defende a mulher em outras canções e como acredita que as mulheres devem ser livres pra serem o que quiserem, inclusive "trepadeiras". Eis aqui a resposta poética e política de uma mulher:

Ouvi teu poema com som de canção
Mas esta melodia não alivia meu coração
Não adianta dizer que disse outrora
Se o que me maltrata é o que cantas agora.

Eu, assim como todas as mulheres, como você diz
Mereço respeito, mereço uma vida feliz
Por que cantastes então censurando nossa liberdade
Vestindo de macho recalcado seu personagem?

Por que cantas que merecemos apanhar ? Me diz?
Por que cantas que merecemos ser envenenadas?
Por que cantas que a mulher livre merece ser depreciada?
Por que cantas se não acredita nesta moral infeliz?

Não me venha com poeminha cheio de demagogia,
Discurso bonito? Qualquer um pode fazer sobre a laje fria.
O homem que nos romanceia, é o mesmo que nos mata,
Queremos respeito, não suas rimas dissimuladas.

Disseste que tens o direito de cantar sobre o quiser…
Cantas! Grite ao mundo todo teu direito de oprimir!
Deslize em suas melodias a opressão contra a mulher,
Só não tente com hipocrisia do que cantas se redimir.


(Texto de Jeff Vasques)


Aproveitando o texto da semana passada sobre a luta contra a "dependência afetiva" a que a mulher é """educada""", trago uma música muito interessante do Dylan e que fica ainda mais interessante na voz de Joan Baez (pela qual sou completamente apaixonado, me permitam a declaração).

Joan Chandos Baez nasceu em 9 de janeiro de 1941, em Staten Island, Nova Iorque, Estados Unidos. É considerada uma das maiores cantoras folk do mundo. Ativista, é também considerada uma das pessoas chave do movimento de protesto dos anos 60, ao lado de Bob Dylan, com quem foi "casada". Ambos participaram da marcha ao lado de Martin Luther King em Washington, 1963. Seus grandes sucessos foram compostos por Dylan especialmente para ela, desde 1961. Dona de uma voz poderosa, doce e extremamente afinada, seus sucessos sempre foram voltados para as canções politizadas. Nos anos 60 começou a misturar ritmos e sons latinos ao seu trabalho. Filha de mexicanos, Joan sempre se interessou pela musicalidade dos ritmos folclóricos da América Latina, chegando a participar de concertos e discos com Mercedes Sosa.

 Joan Baez, por mais que se diga não-feminista (em suas palavras, vê toda a humanidade fracionada e precisando de ajuda, e não só as mulheres) é certamente uma das cantoras fundamentais sobre a temática (procure, por exemplo, a canção "Birmingham Sunday" sobre o assassinato de 4 mulheres negras por racistas da Ku Klux Klan, ou então, "Bread and Roses", sobre a greve de trabalhadoras de uma indústria têxtil em 1912). Engajada em diversas causas políticas de seu tempo, sempre foi muito corajosa e deu a "cara a tapa" abertamente se posicionando contra machismos, guerras e políticas conservadoras. Inclusive, credita-se parte das razões do término da relação com Dylan, dentre outras coisas, a falta de posicionamento político explícito desse... e ela seguiu seu caminho.

A música que trago hoje, "It ain't me babe", não só crítica o padrão romântico de envolvimento afetivo, extremamente dependente a que as mulheres são "conformadas", como apresenta a possibilidade de uma nova forma de relação, aberta para o mundo e para as outras pessoas. Nada de "casais-gosma", fechados em si, nada de mulheres ou homens sanguessugas. Muito interessante que o discurso da música parte da negação, visível no título e no refrão. As canções de amor, em geral, partem da afirmativa: "você é o grande amor da minha vida!", "é você!", "eu faço tudo por você!"... e, aqui, Dylan (e Baez) vão negando, uma a uma, as proposições típicas do envolvimento afetivo romântico monogâmico, exclusivista e dependente: não sou alguém que vai sempre te ajudar; não sou alguém que vai sempre te impedir de cair; não sou alguém que vai morrer por você; não sou alguém que vai considerar tudo que você faz ótimo, só porque é você quem faz. O último verso, em especial, é muito forte e bonito: nega-se a idéia de um "amor para a vida"... ser um amor da vida é muito pouco!!! Dylan e Baez querem mais, toda uma geração, à época, ansiava por muito mais, por uma vida que não se fechasse em apenas um outro, mas que a partir desse se abrisse pra todos os demais e para o mundo, para as questões de seu tempo.

No lindo vídeo, abaixo, Joan Baez canta com aquele seu olhar meio ChicoBuarquiano, ao mesmo tempo doce e firme, ao mesmo tempo presente e ausente. E antes de começar a cantar ela diz: “Essa é uma música de protesto… dedicada a todas as pessoas casadas da audiência ou que estão pra se casar… porque eu sou contra o casamento!”. Para quem se interessar pela temática e pela cantora, vale muito a pena procurar seu "The Joan Baez Lovesong Album". Uma outra música do Dylan, também cantada pela Baez, sobre a desconstrução do amor romântico, é "Love is a four letters word". Mas esse é papo prum outro "Versos e Subversas"





NÃO SOU EU, BABY
(Bob Dylan, na voz de Joan Baez)

Vá embora pela minha janela
Vá embora na velocidade que você quiser
Não sou quem você quer, baby
Não sou quem você precisa.
Você diz que está procurando por alguém
Que nunca seja fraco, mas sempre forte
Para proteger e defender você
Sempre que você esteja errada ou certa
Alguém para abrir toda e qualquer porta.

Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.

Vá calmamente do abismo, baby
Vá calmamente pelo chão
Não sou quem você quer, baby
Eu vou sempre te decepcionar.
Você diz que está procurando por alguém
Que prometa nunca partir
Alguém que feche seus próprio olhos por você
Alguém que feche seu coração
Alguém que morra por você e mais.

Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.

Vá fundir-se novamente à noite, baby,
Tudo aqui dentro é feito de pedra.
Não há nada se movendo aqui
E, mesmo assim, eu não estou sozinho.
Você diz que está procurando por alguém
Que vá te segurar cada vez que você cair,
Que vá te dar flores constantemente
E que virá sempre que você chamar,
Um amor pra sua vida e nada mais.

Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.


It Ain’t Me, Babe
(Bob Dylan)

Go ’way from my window
Leave at your own chosen speed
I’m not the one you want, babe
I’m not the one you need
You say you’re lookin’ for someone
Never weak but always strong
To protect you an’ defend you
Whether you are right or wrong
Someone to open each and every door
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe

Go lightly from the ledge, babe
Go lightly on the ground
I’m not the one you want, babe
I will only let you down
You say you’re lookin’ for someone
Who will promise never to part
Someone to close his eyes for you
Someone to close his heart
Someone who will die for you an’ more
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe

Go melt back into the night, babe
Everything inside is made of stone
There’s nothing in here moving
An’ anyway I’m not alone
You say you’re lookin’ for someone
Who’ll pick you up each time you fall
To gather flowers constantly
An’ to come each time you call
A lover for your life an’ nothing more
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe

(texto e tradução de Jeff Vasques)


Hoje, no Versos e Subversas, faço o cruzamento de poesias de duas grandes intelectuais e artistas (Rosário Castellanos e Idea Vilariño) para discutir um pouco da """educação""" afetiva das mulheres, a construção e imposição de sua dependência emocional e sua vulnerabilidade ao amor fatalista.



 

 MEDITAÇÃO NO UMBRAL
(Rosário Castellanos, México, 1926-1974)

Não, não é a solução
atirar-se debaixo de um trem como a Ana de Tolstoy
nem consumir o arsênico de Madame Bovary
nem aguardar na planície solitária de Ávila a visita
do anjo com a flecha
antes de amarrar o manto à cabeça
e começar a atuar.

Nem concluir as leis geométricas, contando
as vigas da cela de castigo
como o fez Sor Juana. Não é a solução
escrever, enquanto chegam as visitas,
na sala de estar da família Austen
nem fechar-se no ático
de alguma residência da Nova Inglaterra
e sonhar, com a Bíblia dos Dickinson,
debaixo de uma almofada de solteira.

Deve haver outro modo que não se chame
Safoni Mesalina nem María Egipcíaca
nem Madalena nem Clemencia Isaura.
Outro modo de ser humano e livre.
Outro modo de ser.




Neste primeiro poema, Rosário Castellanos busca repetidamente negar a vida de submissão e de condeanação trágica a que estão submetidas as mulheres: seja pela opressão social direta dos homens sobre sua liberdade de ação seja pelas saídas desesperadas a que se lançam as mulheres dominadas por amores  fatais. Ela nega as figuras típicas da subjetividade feminina na literatura e também um ou outro caso real, como a de Sor Juana, religiosa católica e poetisa, considerada a primeira feminista das Américas. São meditações que Rosário realiza sobre o destino das mulheres, seu fim, sobre o tipo de vida e morte que, em geral, têm ("meditação no umbral") e dialoga com sua própria experiência concreta: é público seu enorme sofrimento decorrente de suas relações amorosas conflituosas com o "don juan" Ricardo Guerra, que a mal tratava e a traiu diversas vezes. Essa situação conduziu Rosário à depressão, à hospitais psiquiátricos e tentativas de suicídio. É justamente contra este fim trágico, e que parece inevitável às mulheres, que se rebela Rosário.

 


A CANÇÃO E O POEMA
(Idea Vilariño, Uruguai, 1920-2009)

Hoje que o tempo já passou,
hoje que já passou a vida,
hoje que me rio se penso,
hoje que esqueci aqueles dias,
não sei porque me desperto
algumas noites vazias
ouvindo uma voz que canta
e que, talvez, é a minha.
Quisera morrer — agora— de amor,
para que soubesses
como e quanto te queria,
quisera morrer, quisera… de amor,
para que soubesses…
Algumas noites de paz,
— se é que as há todavia—
passando como sem mim
por essas ruas vazias,
entre a sombra estreita
e um triste odor de glicínias,
escuto uma voz que canta
e que, talvez, é a minha.
Quisera morrer — agora — de amor,
para que soubesses
como e quanto te quería;
quisera morrer, quisera… de amor, para que soubesses…

Idea Vilariño, neste outro poema, expõe a típica imagem do ser "morto de amor" ou que deseja "morrer de amor": a incompletude e o vazio de sua vida sem o homem amado e a anulação de sua subjetividade evidente pelo desejo de morte. Assim como no caso de Rosário, é público o relacionamento conturbado de Idea com o grande escritor uruguai Carlos Onetti... Idea sempre o amou incondicionalmente e por isso sofreu terrivelmente, já que Onetti parecia oscilar em seus interesses com Idea, desenvolvendo um jogo de aproximações e desprezo regular. Idea se questionava por que sempre voltava a Onetti, o "burro, cachorro, besta" a quem dedicou todos seus poemas de amor. Por que o procurava mesmo depois das mais terríveis brigas? Idea, aparentemente, nunca conseguiu dar uma resposta clara a essa pergunta. Ironicamente, foi através de seus poemas de amor que, em geral, retratam seu sofrimento e anulação, que Vilariño se tornou conhecida. Impressionante ver como mesmo a raiva não tem lugar em seus poemas, a não ser uma raiva "fria", que se mostra indiretamente como no poema abaixo no desejo de morte do amante.



TE ESTOU CHAMANDO
(Idea Vilariño, Uruguai, 1920-2009)

Amor
desde a sombra
desde a dor
amor
te estou chamando
desde o poço asfixiante das recordações
sem nada que me sirva nem te espere.
Te estou chamando
amor
como ao destino
como ao sonho
à paz
te estou chamando
com a voz
com o corpo
com a vida
com tudo o que tenho
e que não tenho
com desesperação
com sede
com pranto
como se fosses ar
e eu me afogasse
como se fosses luz
e eu morresse.
Desde uma noite cega
desde o olvido
desde horas fechadas
no solo
sem lágrimas nem amor
te estou chamando
como a morte
amor
como a morte.


Tanto Rosário como Idea foram das maiores intelectuais de seu tempo, mulheres engajadas e lutadoras e que, mesmo assim, enfrentaram enormes conflitos internos, profundas contradições em suas relações afetivas. Isto porque uma sociedade machista as educou (e ainda educa as mulheres) para a dependência afetiva, para a aceitação do amor fatal como modelo, para a anulação de sua subjetividade, para que esta se veja como frágil, incapaz ou pouco capaz de realizar diversas atividades "próprias" dos homens, emocionalmente devotadas a um só grande amor (a um só grande homem) e, portanto, tendendo a estabelecer uma relação com o sexo menos livre. Não é preciso pensar muito pra perceber que isso forja  uma mulher com baixa auto-estima, totalmente ou em-grande-medida incapaz de estar sozinha e de fazer escolhas mais livres acerca de seus amores e relacionamentos.


Essa é a contradição profunda que as duas poetas enfrentaram com as armas de que dispunham: sua arte e sua luta concreta para transformar a sociedade. Acredito que ao espelhar em poesia seus sentimentos de submissão ou de amor trágico buscavam, de alguma forma, romper com esse ciclo, seja pelo questionamento direto (como em Rosário, ainda que sem encontrar possibilidades claras de saída), seja pela exposição nua e crua, mas profundamente elaborada, de seu sofrimento (como nos poemas de Idea). Dar palavras a esses sentimentos, transformar a opressão em poesia já é enfrentar a opressão íntima (socialmente construída), é se ver no espelho e permitir que outras também se vejam. E isso não é pouco. Mais do que expor as "fragilidades" de duas poetas, o intuito deste post, pelo contrário, é evidenciar a grandeza de suas lutas, a força de Rosário Castellanos e Idea Vilariño.


A luta feminista é profunda: deve não só enfrentar os casos mais cotidianos (e por isso mesmo terríveis) de violência contra as mulheres, mas também os aprisionamentos mais sutis da afetividade e da sexualidade feminina, libertando não só as mulheres de sua condicionada "fragilidade" e dependência afetiva, mas também auxiliando os homens a se libertarem de seu canalhesco don juanismo.


(Texto e traduções de Jeff Vasques) 


NASCER HOMEM
(Adela Zamudio)

Quanto trabalho ela tem
pra corrigir a torpeza
de seu esposo, mas na casa,
(permita-me o assombro)
tão inepto como fátuo
segue ele sendo a cabeça,
porque é homem.

Se alguns versos escreve
-“De alguém esses versos são
que ela só os subscreve”;
(permita-me o assombro)
Se esse alguém não é poeta
por que tal suposição?
-Porque é homem.

Uma mulher superior
em eleições não vota,
e vota o sacana pior;
(permita-me o assombro)
Com só saber assinar
pode um idiota votar,
porque é homem.

Ele se abate e bebe ou joga
em um revés da sorte;
ela sofre, luta e roga;
(permita-me o assombro).
Ela se chama “ser débil”,
e ele se apelida “ser forte”
porque é homem.

Ela deve perdoar
se seu esposo lhe é infiel;
mas, ele pode se vingar;
(permita-me o assombro)
em um caso semelhante
até pode ele matar,
porque é homem.

Oh, mortal!
Oh mortal privilegiado,
que de perfeito e honesto
goza seguro renome!
Para você que basta?
Nascer homem.

(tradução de Jeff Vasques)


Adela Zamudio (Cochabamba-Bolívia, 1854-1928) publicou seu primero poema aos 15 anos, entitulado "Duas rosas" e, desde então, não pararia mais de escrever, sempre assinando com o pseudônimo de "Soledad" (Solidão), seu nome de guerra. Apesar de ter cursado apenas até o terceiro ano do primário (essa era a educação máxima a que as mulheres bolivianas tinham direito à época), seu desejo por conhecimento e liberdade à leva a instruir-se por conta própria. Por suas idéias avançadas para a época é isolada socialmente e aprende desde cedo a lidar com a tristeza e solidão a que se viu ilhada.

Adela, já como professora, desenvolve uma fecunda atividade pedagógica buscando eliminar as travas reacionárias que conduziam a educação das jovens bolivianas. Em sua defesa dos direitos das mulheres de receber boa educação, Adela Zamudio clamava a necessidade de introduzir o laicismo nos  programas acadêmicos nacionais, lançando algumas propostas audazes para sua época, como a instauração do matrimônio civil, o direito ao divórcio e à separação dos poderes da igreja católica e do Estado. Impulsionou o ensino gratuito e laico, denunciou fortemente o ‘primitivismo patriarcal’ da sociedade e a exploração e dominação dominante. Adela Zamudio contribuiu com todos seus esforços para a formação do pensamento feminista na Bolívia: em 1921 aparece em Oruro o primeiro número da revista "Feminiflor", dirigida e escrita por mulheres que fortaleciam o ideal da liberação feminina; e, em 1923, se constituiu em La Paz a primeira organização autônoma de mulheres que lutou pelos seus direitos políticos, o "Ateneo Feminino". Por esse período, as mulheres se incorporavam ao movimento sindical, com sindicatos própios e com a Federação Operária Feminina.

Adela Zamudio forma parte da primeira geração de autoras hispânicas do período modernista que resistem à estética vigente. São autoras que apelaram em seus escritos a um projeto de autenticidade tanto pessoal e político como estético que desarticulava a visão estereotipada que se projetava da mulher no cânone socioliterário. Em Zamudio se encontra a prioridade dada a um compromisso íntegro com a realidade boliviana de seu tempo, denunciando o sistema em curso. Assim, Adela levou adiante seu projeto de legitimação e fortalecimento da mulher. Lydia Parada de Brown considera que "esta escritora boliviana foi uma das maiores da América, mas lamentavelmente não alcançou a fama de Gabriela Mistral, ou de Juana de Ibarbourou".  O poema que traduzi acima é um de seus poemas mais famosos.

(Edward Hopper, Cape Cod Morning,  oil on canvas, 1950,  Smithsonian American Art Museum)

Geir Campos (Brasil, 1924-1999) foi piloto da marinha, professor de ginásio e universitário, radialista, jornalista, editor, contista, poeta e tradutor (traduziu Rilke, Brecht, Kafka, Herman Hesse, Walt Whitman, Shakespeare e Sófocles). Foi chamado de “habilíssimo artista” por Manuel Bandeira. Foi um dos organizadores, com Moacyr Félix, dos Cadernos do povo brasileiro, Violão de rua, editados em 1962 pelo CPC da UNE e Civilização Brasileira. O poeta esteve sempre engajado nas lutas de seu tempo.

Em 1951, Geir Campos criou, em Niterói, com o poeta Thiago de Melo, as Edições Hipocampo. A iniciativa se insere num dos momentos mais significativos da história das artes gráficas do país. As Edições Hipocampo foram um empreendimento nascido do amor à poesia e às artes gráficas. Os livros eram compostos tipograficamente e diagramados pelos próprios editores, numa gráfica de fundo de quintal.

O que traz Geir às páginas do "Subvertidas" é um conjunto de seus poemas chamados “Cantigas para Acordar Mulher” (do livro de mesmo nome). É impressionante observar um homem se preocupando com a condição da mulher no Brasil de 1964. E mais interessante ainda é aparecer uma auto-crítica na "8a Cantiga de Acordar Mulher" em que aponta o machismo também na esquerda! O conjunto como um todo, das cantigas, soa muito potente. Abaixo, selecionei as melhores.

3ª CANTIGA DE ACORDAR MULHER

Das vozes que te embalavam
a esperança de menina
moça
guardaste mais, de tanto repisadas,
as perfumadas lições
da nobre arte de agarrar um homem.
De como te fazeres desejada,
amada porventura,
tudo aprendeste: os gestos, os meneios,
a graça de sorrir e de calar.
Hoje tens o teu homem
disposto a desdobrar-se em pão e vinho
para apagar tua fome.
por isso, que lhe hás de dar:
o trigo de tua pele, as uvas de tua boca?
Se sem a ponte do amor, tua lavoura é tão pouca...
Acorda: onde estão as vozes que te ensinaram a amar?

4ª CANTIGA DE ACORDAR MULHER

Bom é sorrires, olhar
em mim: não vês
o inimigo, o rival
jamais.
Na caça, não serás
a presa; não serás,
no jogo, a prenda.
Partilharemos, sem meias
medidas,
a espera, o arroubo, o gesto,
o salto, o pouso e o sono
e o gosto desse rir
dentro e fora do tempo
sempre que nova
                             mente
acordares


7ª CANTIGA DE ACORDAR MULHER

Se te chamarem flor
toma cuidado:
vê se não é gente que te quer por
numa redoma – lindo objeto – a vegetar
alheia a tempo e lugar!

Se te chamarem flor,
acorda e toma cuidado:
olha que te levam para o mesmo lado
de tanto destino mal-aventurado!


8a. CANTIGA DE ACORDAR MULHER

Vozes da esquerda, surdas,
e vozes da direita, afinadíssimas,
hão de louvar-te a arte
de ser mulher:
mansa como uma ovelha,
jeitosa como uma gata de luxo,
dócil e generosa como uma árvore
a se multiplicar em sombra e frutos,
como uma estátua impassível,
hábil de acordo com as conveniências,
e acima disso
crente em ser esse o teu ideal de vida…
Acorda: pois foi essa
a sorte que escolheste?


9a. CANTIGA DE ACORDAR MULHER

Um dia te acharás
sem inteirar a casa:
ouvirás o marido ressonando,
os filhos dormindo em calma…
O espelho te acenará,
te lembrará coisas da mocidade,
coisas da meninice,
te mostrará vindas algumas rugas;
contemplarás o espelho,
o quarto, a casa;
perguntarás por ti mesma,
pelo teu próprio destino
— e o espelho fará silêncio:
será o sinal de estares acordando.


No "Versos e Subversas" desta semana, divulgo uma poesia muito boa que vem circulando pela internet, certamente de alguma brava lutadora feminista:


SEJAMOS PUTAS!
(autora desconhecida)

Se você sai com um cara e transa com ele na primeira noite:
"Essa Puta é uma fácil"
Se você sai com um cara e não transa com ele na primeira noite:
"Essa Puta se faz de difícil"
Se você prefere roupas mais curtas:
"Essa Puta é uma exibida"
Se você prefere roupas mais longas:
"Essa Puta é uma hipócrita se finge de santa"
Se você gosta de beber:
"Essa Puta é uma bêbada, ridícula, sem moral"
Se você não gosta de beber
"Essa Puta é totalmente careta"
Se você gosta de falar de sexo
"Essa Puta é vulgar demais"
Se você não gosta de falar de sexo
"Essa Puta só pode ser frígida"
Se você fala palavrão
"Essa Puta não tem educação"
Se você não fala palavrão
"Essa Puta é metida a certinha"
Se você trabalha fora
"Essa Puta não cuida da casa, do marido. Depois reclama se ele acha quem cuide"
Se você não trabalha fora
"Essa Puta é uma mercenária, fica coçando o dia inteiro, vive às custas do marido"
Se você não quer se casar
"Essa Puta só quer saber de dar pra todo mundo"
Se você sofre violência doméstica e não denuncia
"Essa Puta só pode gostar de apanhar"
Se você sofre violência doméstica e denuncia
"Essa Puta deve ter feito alguma coisa pra merecer, e agora ferra a vida do coitado"
Se seu companheiro está num relacionamento extra-conjugal
"Essa Puta não dá em casa, ele procura na rua"
Se é você em um relacionamento extra-conjugal
"Essa Puta paga com um par de chifres tudo que o coitado faz por ela"
Se você não tem condições, engravida e resolve ter o filho
"Essa Puta não se cuidou e agora põe mais um inocente pra sofrer no mundo"
Se você não tem condições, engravida e resolve abortar
"Essa Puta não se cuidou e agora quer tirar a vida do inocente"
Essa Puta
Essa Puta
Puta
Puta
Puta
Puta...





Gioconda Belli (Nicarágua, 1948) é uma das poetas nicaraguenses mais conhecidas dentro e fora de seu país. Ainda jovem se integrou às fileiras da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) na luta pela derrubada do governo ditatorial de Somoza. Foi correio clandestino, transportou armas, viajou pela Europa e América recolhendo recursos e divulgando a luta sandinista. E, claro, no meio de tudo isso, escrevia suas poesias. Com o triunfo da Revolução Nicaraguense, em 1979, ocupou vários cargos dentro do governo revolucionário. Com a posterior burocratização do partido no poder, Gioconda se afasta da FSLN e passa a criticar duramente seu “endireitamento”.

De início, a poesia de Belli, produzida no contexto da revolução nicaraguense, coloca grande ênfase na união dos nicaragüenses contra a tirania de Somoza, tratando o amor de um casal como metáfora da unidade sociopolítica e de gênero em oposição a tirania. Esse amor era "arma contra a opressão… o desejo dionisíaco que vence a morte, o desespero". Belli apresentava, então, a mulher como a entidade destinada principalmente a dar amor, associada com o sentimental e com o passivo. Ela era a natureza e a paisagem nicaragüenses, a terra que esperava ser possuída pelo amante-guerrilheiro (ativo, forte e que domina o espaço público), dicotomia de gênero própria do universo patriarcal.

Porém, Belli também já incluía em seus versos elementos inovadores da representação feminina, fissuras no discurso patriarcal que evidenciavam a negociação que a escritora fazia entre o tradicional e o novo.  Com a vitória da revolução nicaraguense, essas fissuras vão aos poucos crescendo e uma nova identidade feminina vai se assumindo como voz dominante em sua poética, ainda que com recaídas próprias das tensões com o velho discurso. Belli realiza uma corajosa autocrítica do eu-feminino, reconhece o excessivo idealismo com que encarava as relações amorosas, passa a questionar abertamente a submissão da mulher e a defender que esta possa estabelecer seus próprios limites, suas próprias regras, o que realmente quer ou não quer no amor.

Vista em sua totalidade, a poesia de Belli é um fantástico registro da trajetória do eu-feminino, com seus conflitos e contradições de identidade até uma consciência feminista. Um retrato bastante genuíno das latinoamericanas-lutadoras do século XX e começo do XXI, com seus acertos e também com sua incansável negociação com a opressão tradicional de nossa cultura machista e patriarcal.

Jeff Vasques

 
NOVA TESE FEMINISTA
(Gioconda Belli, tradução  de Jeff Vasques)

Como te dizer
homem
que não te necessito?
Não posso cantar a liberação feminina
se não te canto
e te convido a descobrir liberações comigo.

Não me agrada a gente que se engana
dizendo que o amor não é necessário
-"tenha medo, eu tremo"

Há tanto novo que aprender,
formosos homens da caverna a resgatar,
novas maneiras de amar que ainda não inventamos.

Em nome próprio declaro
que gosto de me saber mulher
frente a um homem que se sabe homem,
que sei de ciência certa
que o amor
é melhor que as multi-vitaminas,
que o casal humano
é o princípio inevitável da vida,

que por isso não quero jamais liberar-me do homem;
o amo
com todas suas debilidades
e gosto de compartilhar sua teimosia
todo este amplo mundo
onde ambos somos imprescindíveis.

Não quero que me acusem de mulher tradicional
mas podem me acusar
tantas como quantas vezes queiram
de mulher.

REGRAS DO JOGO PARA OS HOMENS QUE QUEIRAM MULHERES MULHERES
(Gioconda Belli, tradução de Silvio Diogo)

I
O homem que me amar
deverá saber abrir as cortinas da pele,
encontrar a profundidade de meus olhos
e conhecer o que se aninha em mim,
a andorinha transparente da ternura.

II
O homem que me amar
não desejará possuir-me como uma mercadoria,
nem me exibir como troféu de caça,
saberá estar a meu lado
com o mesmo amor
com o qual estarei ao lado seu.

III
O amor do homem que me amar
será forte como as árvores de ceibo,
protetor e seguro como elas,
puro como uma manhã de dezembro.

IV
O homem que me amar
não duvidará de meu sorriso
nem temerá a abundância de meu cabelo,
respeitará a tristeza, o silêncio
e com carícias tocará meu ventre como violão
para que brotem música e alegria
do fundo de meu corpo.

V
O homem que me amar
poderá encontrar em mim
a rede onde descansar
do pesado fardo de suas preocupações,
a amiga com quem compartilhar seus íntimos segredos,
o lago onde flutuar
sem medo de que a âncora do compromisso
o impeça de voar quando queira ser pássaro.
de vir a ser pássaro.

VI
O homem que me amar
fará poesia com sua vida,
construindo cada dia
com o olhar posto no futuro.

VII
Acima de todas as coisas,
o homem que me amar
deverá amar o povo
não como uma palavra abstrata
tirada da manga,
mas como algo real, concreto,
a quem render homenagem com ações
e dar a vida, se necessário.

VIII
O homem que me amar
reconhecerá meu rosto na trincheira
joelhos no chão me amará
enquanto os dois disparam juntos
contra o inimigo.

IX
O amor de meu homem
não conhecerá o temor da entrega,
nem terá medo de se descobrir ante a magia da paixão
em uma praça cheia de multidões.
Poderá gritar - te amo -
ou colocar placas no alto dos edifícios
proclamando seu direito de sentir
o mais lindo e humano dos sentimentos.

X
O amor de meu homem
não fugirá das cozinhas,
nem das fraldas do filho,
será como um vento fresco
levando consigo, entre nuvens de sonho e de passado,
as fraquezas que, durante séculos, nos mantiveram separados
como seres de distintas estaturas.

XI
O amor de meu homem
não desejará rotular ou etiquetar,
me dará ar, espaço,
alimento para crescer e ser melhor,
como uma Revolução
que faz de cada dia
o começo de uma nova vitória.

NÃO ME ARREPENDO DE NADA
(Gioconda Belli, tradução base de Silvio Diogo, versão de Jeff Vasques)

Daqui, da mulher que sou,
às vezes me entrego a contemplar
aquelas que eu podia ter sido;
as mulheres primorosas,
modelo de virtudes,
trabalhadoras boas esposas
que minha mãe desejou para mim.

Não sei por quê
passei minha vida inteira me rebelando
contra elas
odeio suas ameaças em meu corpo
a culpa que suas vidas impecáveis
por um estranho feitiço,
me inspiram;

revolto-me contra seus bons ofícios,
os prantos noturnos sob o travesseiro,
às escondidas do marido
o pudor da nudez, por baixo da passada e engomada
roupa íntima.

Estas mulheres, no entanto,
olham-me do interior de seus espelhos,
levantam um dedo acusador
e, às vezes, cedo a seus olhares de reprimenda
e gostaria de ter a aceitação universal,
ser a “boa menina”, a “mulher decente”
a impecável Gioconda,
tirar dez em conduta
com o partido, o estado, as amizades,
minha família, meus filhos e todos os demais seres
que, abundantes, povoam este nosso mundo.

Nesta contradição invisível
entre o que deveria ter sido e o que é
travei numerosas batalhas mortais,
batalhas inúteis delas contra mim
- elas contra mim que sou eu mesma -

Com a “psique dolorida” despenteio-me
transgredindo ancestrais programações
desgarrando-me das mulheres internas
que, desde a infância, torcem o rosto para mim
pois não me encaixo no molde perfeito de seus sonhos,
pois me atrevo a ser esta louca falível, terna e vulnerável
que se apaixona feito puta triste
por causas justas, homens bonitos e palavras brincalhonas
pois, já adulta, atrevi-me a viver a infância proibida,
e fiz amor sobre escrivaninhas em horários comerciais
e rompi laços invioláveis e me atrevi a desfrutar
o corpo são e sinuoso com que os genes
de todos os meus ancestrais me dotaram.

Não culpo ninguém. Melhor, agradeço a eles pelos dons.
Não me arrependo de nada, como disse Edith Piaf.
Porém, nos poços escuros em que me afundo;
nas manhãs em que, ao entreabrir os olhos,
sinto as lágrimas fazerem força
apesar da felicidade
que finalmente conquistei
rompendo estratos e camadas de rocha terciária
e quaternária,
vejo minhas outras mulheres sentadas no vestíbulo
fitando-me com olhos doídos
e me culpe pela felicidade.

Irracionais boas meninas
rodeiam-me e desfilam suas canções infantis contra mim;
contra esta mulher
feita
plena
esta mulher de peitos em peito
e largos quadris
que, por minha mãe e contra ela,
eu gosto de ser.

Como Conquistar um Homem