Neste Versos e Subversas, vou abordar a "polêmica" acerca do machismo presente na música "Trepadeira" do Emicida, fonte de críticas e atos contra o femicídio incentivado pelas produções culturais. A foto ao lado retrata parte do ato realizado recentemente numa apresenteção do Emicida, organizado e convocado pelas "Trepadeiras" (clique aqui para ler a convocatória!). Para seguir lendo o texto é importante conhecer a música... se não conhece clique aqui para ler a letra da música. Não há dúvida de que o personagem-narrador da música (o "eu lírico") tem posturas machistas, as mais óbvias: depreciação da mulher que faz o que quer com seu corpo ("biscate", "trepadeira"...); ameaça de violência contra ela justamente por fazer o que quer com seu corpo e desejo ("Merece era uma surra de espada de São Jorge / um chá de comigo ninguém pode"). A questão é saber se pode-se transpor essa postura do "eu lírico" pro autor da canção, Emicida. Uma primeira pergunta, para nos localizarmos, seria: Emicida fez essa canção para deliberadamente estimular posturas machistas como a do personagem-narrador?
Claramente, não, o que se pode concluir pelo que se conhece da obra e da postura pública de Emicida, que não apresentam traços de apologia ao machismo. Isso pode ser fortalecido pelo texto de sua defesa contra as críticas recebidas, em que se coloca do mesmo lado das feministas (texto aqui). Isso, claro, não exime Emicida de machismo nesta canção, pois ele pode, mesmo sem intenção, ter construído uma canção machista, ou seja, que fortalece e incentiva ações machistas.
Claramente, não, o que se pode concluir pelo que se conhece da obra e da postura pública de Emicida, que não apresentam traços de apologia ao machismo. Isso pode ser fortalecido pelo texto de sua defesa contra as críticas recebidas, em que se coloca do mesmo lado das feministas (texto aqui). Isso, claro, não exime Emicida de machismo nesta canção, pois ele pode, mesmo sem intenção, ter construído uma canção machista, ou seja, que fortalece e incentiva ações machistas.
O principal argumento de Emicida em sua defesa é que se trata de um retrato ficcional de um cara com dor de cotovelo (e, infiro, com as consequentes reações violentas). Retrato similar e inverso, defende ele, ao que fez em outra canção ("Vacilão"): um mulherengo que sofre porque a sua namorada o abandona por vacilar (ficar com outras mulheres, trair). Em um segundo argumento, aponta que muitos outros compositores, como Lupcínio Rodrigues, em suas canções de "dor de cotovelo" fizeram o mesmo: retratos dessas situações e reações.

O interessante é discutir o primeiro argumento. Pra isso precisamos antes responder se é possível retratar a sociedade (ou ficcionalizar algum aspecto seu) sem "sujar as mãos", ou seja, de forma "isenta", "neutra", sem posicionar-se. Acredito que um "retrato" nunca é bem um retrato: a metáfora é enganadora, já que nem em uma foto se tem isenção de posição, intenção, foco. Uma reprodução "neutra" é uma forma camuflada de reproduzir o modus operandi dominante na sociedade que, sabemos, favorece alguns em detrimento de outros (no caso, o machismo é dominante e favorece homens). Portanto, ou você está fortalecendo o machismo ou o atacando. Ou você está fortalecendo a ordem-conservadora-dominante estabelecida ou está a atacando. Isso nem sempre é fácil de avaliar e distinguir em obras artísticas, principalmente em obras mais complexas (a escritora Hilda Hilst foi, e ainda é, criticada indevidamente por seus textos pornográficos, acusada, por exemplo, de incentivar a pedofilia em "O Caderno Rosa de Lori Lamby").
Emicida parece tentar se apoiar na idéia de que sua canção "Trepadeira" é uma ficção que retrata uma situação comum... tenta fortalecer ainda mais seu argumento quando diz que a história retratada pela "Trepadeira" está equilibrada com o retrato do "Vacilão", feito em outra música, onde um homem é criticado por ter "vacilado" com sua namorada que o abandona, e sofre por isso. Assim teria mostrado os dois lados da moeda. Difícil falar em dois lados, quando um deles, o da mulher, é claramente massacrado. Aliás, se seguirmos o que o próprio Emicida sugere, de narrativas complementares-opostas, teríamos em "Vacilão" o homem-errado ("vacilão"), a mulher-certa; logo, em "Trepadeira", o homem-certo, a mulher-errada ("trepadeira, biscate"), o que reforça a associação machista de que a mulher não deve ser dona do seu corpo, mas submissa. Buenas, se comparamos as letras de "Trepadeira" e "Vacilão" (clique aqui para ler a letra) vemos que apenas em "Trepadeira" aparece a violência contra uma das partes (no caso, contra a mulher). Se Emicida respondesse a isso dizendo que assim é porque assim ocorre na sociedade; que está apenas retratando como um homem e uma mulher reagem a uma situação semelhante, estaria assumindo a idéia furada já abordada acima do "retrato neutro" e, assim, estaria naturalizando a violência contra a mulher. Uma outra possibilidade de resposta é a de que haveria uma crítica embutida à postura do narrador-personagem em "Trepadeira".

bobão-chorão-ciumento que não consegue lidar com uma mulher que faz o que quer com seu corpo. Logo, a canção estaria depreciando figuras como a dele. Acho, claro, uma leitura possível, apesar de pouco provável pela forma como a narrativa é construída... pra mim, entre negativas e positivas, o narrador claramente ganha a parada, há uma empatia criada que leva o ouvinte (homens e mulheres criad@s em uma cultura machista e sem questionamento crítico sobre o tema) a ficar do lado do narrador-personagem e entender como "justa" ou "justificável" a sua intenção de violência contra a mulher ("é, ela merece mesmo uma surra", "biscate"). Logo, pra mim, a música é sim machista e, Emicida, o vacilão da vez. Isso não significa que toda a obra do Emicida seja machista, nem que ele seja um apologista do machismo. Importante acompanharmos como ele reage às críticas apontadas e como isso repercute em sua postura e obra daqui em diante.
Aliás, é importante salientar que, em termos de música machista, Emicida tem razão ao dizer que existem outros importantes e fundamentais alvos que precisam receber a devida crítica: grupos musicais que se constróem fundamentados no machismo e que são impulsionados, justamente por isso, por grandes gravadoras e atingem milhões de pessoas. O fato de haver outros alvos-machistas, talvez maiores e mais importantes na luta feminista, não implica que não se deva criticar o Emicida ou qualquer outro que fizer música machista, seja Lupcínio Rodrigues (em "Braza": "Toda vez que eu chego em casa, desce logo uma explosão/ Ciúme de mim, não acredito!/ Pois meu bem, não é com grito que se prende um coração/ Desculpe a minha pergunta, mas quem tanta asneira junta lhe ensinou a me falar/ Seu professor bem podia ensinar que não devia deste modo me tratar. Isso é um soco, não é nem um tapa..."), seja João Bosco e Aldir Blanc (em "Gol Anulado": "Quando você gritou 'Mengo', no segundo gol do Zico tirei sem pensar o cinto e bati até cansar"). Liberdade poética, lamento informar, tem sim limites (e há tantos outros, limites conservadores e machistas a se quebrar!)

Pra fechar, um poema muito bom que foi publicado no "Feminismo sem demagogia" (clique aqui) em resposta ao poema de defesa que o Emicida vem declamando antes de cantar a música "Trepadeira" em seus shows. No poema, Emicida vai mostrando como defende a mulher em outras canções e como acredita que as mulheres devem ser livres pra serem o que quiserem, inclusive "trepadeiras". Eis aqui a resposta poética e política de uma mulher:
Ouvi teu poema com som de canção
Mas esta melodia não alivia meu coração
Não adianta dizer que disse outrora
Se o que me maltrata é o que cantas agora.
Eu, assim como todas as mulheres, como você diz
Mereço respeito, mereço uma vida feliz
Por que cantastes então censurando nossa liberdade
Vestindo de macho recalcado seu personagem?
Por que cantas que merecemos apanhar ? Me diz?
Por que cantas que merecemos ser envenenadas?
Por que cantas que a mulher livre merece ser depreciada?
Por que cantas se não acredita nesta moral infeliz?
Não me venha com poeminha cheio de demagogia,
Discurso bonito? Qualquer um pode fazer sobre a laje fria.
O homem que nos romanceia, é o mesmo que nos mata,
Queremos respeito, não suas rimas dissimuladas.
Disseste que tens o direito de cantar sobre o quiser…
Cantas! Grite ao mundo todo teu direito de oprimir!
Deslize em suas melodias a opressão contra a mulher,
Só não tente com hipocrisia do que cantas se redimir.
(Texto de Jeff Vasques)
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