Lara de Lemos ao lado de seu amigo e poeta Mario Quintana
São poucos os relatos sobre mulheres aprisionadas pela ditadura brasileira, torturadas. Certamente, foram as mulheres as que mais sofreram com as prisões e torturas posto que, além do horror da violência "usual" dos carrascos, sofriam também da violência própria do machismo, com estupros e interrupção da gravidez (clique aqui para saber mais).Para a ditadura, as mulheres militantes transgrediam a ordem duplamente: por se revoltarem contra a ditadura e também por romperem com os padrões tradicionais de gênero. Eram "culpadas" por serem "terroristas" e "mulheres", pois ocupavam um espaço público destinado aos homens. Por isso mesmo, nada melhor que publicizar a voz poética de uma lutadora, presa e torturada: Lara de Lemos (1923-2010), jornalista, tradutora e poeta do sul, engajada nas causas políticas de sua época. Lara ficou conhecida por escrever, junto a Paulo Cesar Pereio, o Hino da Legalidade, canção entoada em todo país pedindo a posse do vice-presidente João Goulart que se encontrava suspensa pelos militares. Estabelecido o golpe militar de 64, ela e seus filhos foram presos e ela submetida a tortura. Já fora da prisão escreveu livros de poesia sobre a experiência do calabouço e da luta política, sendo o mais famoso o “Inventário do Medo”. Sua poesia passa, claro, também por sua condição de mulher oprimida (clique aqui para saber mais). Nos poemas abaixo, a terrível experiência do calabouço é retratada de forma direta, seca e forte... acredito mesmo que o "melhor" retrato do pior que já vivemos no Brasil.
CELAS – 1
Viajo entre túneis de sono
como un cão vadio à procura
do dono.
Viajo em barcos fastasma
onde o tempo retrocede em busca
da alma.
Viajo consultando arquivos
e a memória ilumina rostos
redivivos.
Viajo procurando portos
e me encontro no país
dos mortos.
CELA – 6
A hora dos
capuzes negros
é a hora mais negra
dos prisioneiros.
Descer às cegas
pelas cascatas
apalpando paredes
adivinhando fissuras
Pisando superfícies
escorregadias
de sangue
e urina.
Às cegas.
CELA - 23
Eis que me retornam
vestes, sapatos,
óculos, relógios.
Bolsa povoada
de lenços, moedas,
inúteis estojos.
Despojada até aos ossos
não sei o que fazer
de meus despojos.
CONTA CORRENTE
Para Wanda Maria
CRÉDITO DÉBITO
O creditado de mim o que dei
não foi muito. foi pouco
Quatro sentidos o que nasce
e uma visão: a si se opondo:
além do visgo meu sim, meu não
do lucro minha sina
além do oco meu sangue aguado
do homem de medo.
além do soco A palavra e a
do mundo. mordaça.
SALDO
só o domado viver.
Mais nada.
LEGADO
Para Laury Maciel
Recuso-me a herança
deste poço vazio
deste lodo legado
em negligências.
Engulo a seco e calo.
Aposto em cada poema
— único engenho
ainda não vencido.
Proponho rubros jogos
olhos atentos
para o imaginário.
Ases de puro ouro
— naipes que guardo
para meu incêndio.
(texto e seleção por Jeff Vasques)
Viajo entre túneis de sono
como un cão vadio à procura
do dono.
Viajo em barcos fastasma
onde o tempo retrocede em busca
da alma.
Viajo consultando arquivos
e a memória ilumina rostos
redivivos.
Viajo procurando portos
e me encontro no país
dos mortos.
CELA – 6
A hora dos
capuzes negros
é a hora mais negra
dos prisioneiros.
Descer às cegas
pelas cascatas
apalpando paredes
adivinhando fissuras
Pisando superfícies
escorregadias
de sangue
e urina.
Às cegas.
CELA - 23
Eis que me retornam
vestes, sapatos,
óculos, relógios.
Bolsa povoada
de lenços, moedas,
inúteis estojos.
Despojada até aos ossos
não sei o que fazer
de meus despojos.
CONTA CORRENTE
Para Wanda Maria
CRÉDITO DÉBITO
O creditado de mim o que dei
não foi muito. foi pouco
Quatro sentidos o que nasce
e uma visão: a si se opondo:
além do visgo meu sim, meu não
do lucro minha sina
além do oco meu sangue aguado
do homem de medo.
além do soco A palavra e a
do mundo. mordaça.
SALDO
só o domado viver.
Mais nada.
LEGADO
Para Laury Maciel
Recuso-me a herança
deste poço vazio
deste lodo legado
em negligências.
Engulo a seco e calo.
Aposto em cada poema
— único engenho
ainda não vencido.
Proponho rubros jogos
olhos atentos
para o imaginário.
Ases de puro ouro
— naipes que guardo
para meu incêndio.
(texto e seleção por Jeff Vasques)
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