Reinaldo Glioche
O nu, exposto em aplicativos como Tinder e Instagram, já não choca tanto, mas está sendo usado para estreitar relações e queimar etapas na construção da intimidade
"Não tiramos mais fotos para nós mesmos. Nós as tiramos para serem compartilhadas". A avaliação do crítico de arte do jornal britânico “Guardian”, Adrian Serle, radiografa uma transformação da relação entre arte e nudez na esteira de aplicativos como o Grindr, OK Cupid, Tinder e Instagram. Mas a transformação não se esgota aí. Está em curso uma mudança na relação humana com a fotografia e com a imagem do próprio corpo.
“Percebo hoje um grande passo em relação à vontade de se ver sendo fotografada nua”, observa a fotógrafa Fernanda Preto. Ela é dona de uma vasta experiência na fotografia sensual, tanto na vertente autoral (Ensaiopitanga.com e a Série Estudos de Nu), como em sua veia mais comercial, com trabalhos para revistas como a Status.
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“Existe uma curiosidade menos velada do que havia há três ou quatro anos, quando essa vontade era perceptível, mas se manifestava com mais pudores. Era difícil, por exemplo, obter autorização para divulgar as fotos de uma cliente. O ensaio ficava envolto numa atmosfera de sigilo, como se fosse um conteúdo proibido”. Para Fernanda, hoje a ideia de ser fazer um book sensual é mais aceitável.
“Acho que isso tem relação com o fato de a exposição do corpo ter se tornado quase banal nas mídias sociais. A mulher que procura ser fotografada nua agora se sente mais segura para exibir o corpo”.
O que a arte tem a ver com isso?
O artista performático Dries Verhoeven provocou grande polêmica com uma exposição em Berlim em que exibia fotos de pênis coletadas no Grindr – rede social em que homens gays e bissexuais buscam parceiros para relações sexuais –, enquanto projetava em um painel de vidro conversas que ele havia travado com diferentes homens na rede social.
O trabalho artístico chamado “Wanna play?” (algo como “Quer brincar?” em tradução livre) durou pouco mais de cinco dias e terminou sob furiosos protestos de anônimos que procuraram Verhoeven para demovê-lo da ideia de exibir algo privado em um espaço público. Mas, as fotos do Grindr e essas conversas são mesmo privadas? Não são, argumentou Verhoeven em um post em seu perfil no Facebook. A partir do momento em que as pessoas postam essas fotos em uma rede social e interagem com outras pessoas, essas interações caem no domínio público da internet.
No ano passado outros pênis causaram polêmica no mundo das artes. Um grupo feminista chamado Future Femme percorreu um concorrido circuito de arte nos Estados Unidos com a exposição “Show me more: a collection of dickpix” (Me mostre mais: uma coleção de fotos de pênis). O trabalho expôs fotos de genitálias masculinas coletadas pelas quatro mulheres que compõem o Future Femme em aplicativos e demais mídias sociais de namoro e paquera. A ideia do projeto, segundo o grupo, era discutir a relação diária de sexo, gênero, poder e identidade inerentes ao uso das mídias sociais. As artistas, diferentemente da exposição em Berlim, também se mantiveram no anonimato.
O jornalista britânico Adrian Serle acha que os artistas podem fazer o que quiserem, mas a duplicidade nas redes sociais é um limite que não se deve cruzar. A crítica de arte Alecia Lynn Eberhardt, que escreve para o “Huffington Post”, pensa radicalmente diferente. Para ela, as artistas do Future Femme erraram ao solicitar a estranhos as fotos que foram exibidas na exposição “Show me more”, ainda que não tenham pedido para exibir as tais fotos. Para Eberhardt, ao pedir essas fotos, elas se aproximam mais do “revange porn” (pornô de vingança) do que de uma arte reflexiva sobre a nudez ostensiva e muitas vezes não solicitada que invade contas pessoais alheias nas redes sociais.
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Para Fernanda Preto, a arte se apropria de qualquer coisa. Segundo ela, a arte questiona esse modelo de imagem corporal idealizado pela sociedade ao longo dos tempos.
“A fotografia escancara esse corpo representado de tantas formas e tão modificado ao longo da história”, observa ao destacar – citando o antropólogo Marcel Mauss - que “a arte sempre esteve presente nas relações sociais e as relações sociais na arte”.
Mas se fotos de anônimos pipocam na internet e vão parar em exposições artísticas, por que o mesmo não pode ocorrer com as fotos de celebridades.
Recentemente, uma galeria na Flórida se viu no epicentro de uma grande polêmica envolvendo nudez, celebridades, fotografia e arte. O artista XVALA havia anunciado que iria expor as fotos vazadas de celebridades como Jennifer Lawrence, Kirsten Dunst, Kate Upton, Avril Lavigne e outras em tamanho real na mostra “No delete”, parte de seu projeto “Fear Google” (“Tema o Google”, em tradução literal). O anúncio gerou fortes reações dos representantes das celebridades e do público e provocou um recuo por parte de XVALA. O artista, no entanto, fez um adendo. Sem as fotos vazadas das celebridades, a discussão sobre privacidade na era digital pretendida por ele com “No delete” estaria incompleta.
“Talvez em dez anos, ninguém mais se preocupe tanto assim”, projeta Serle. Fernanda concorda. “Isso mostra o conservadorismo que ainda se faz presente. Caso contrário, não seria uma grande notícia uma celebridade se fotografar e deixar escapar isso na internet. Afinal, trata-se de uma mulher lidando com seus próprios desejos e escolhas para sua afirmação”.
Hiper-realidade
Outro efeito colateral dessa proliferação da nudez no mundo digital foi o crescente desinteresse pelas vias antes tradicionais de acesso a ela. Um exemplo é o declínio das revistas masculinas que exploram a nudez feminina. A Playboy, que no final da década de 90 enfileirava recordes de vendas acima dos 700 mil exemplares vendidos, hoje sofre para vender mais de 100 mil revistas em um mês. Para Fernanda, não há o que lamentar.
“É preciso aceitar que nossa relação com o corpo mudou”. Ela considera um retrocesso tentar romancear uma relação que já ficou no passado.
“O mundo digital trouxe uma hiper-realidade aos nossos olhos, onde cada detalhe de um corpo é observado”.
“A privacidade está desaparecendo”, acrescenta Serle, ao indicar que a arte está capturando uma transformação notável na nossa relação com o corpo. Fernanda acredita que o declínio das revistas masculinas está ligado ao fato de que “o corpo do outro está mais exposto do que antes”.
Já não se acredita mais em uma mulher “photoshopada”, acusa a fotógrafa para quem a erotização “entra em descrédito pelas fotos e vídeos amadores”.
Mas a fotógrafa faz um alerta: as imagens estão sendo intensamente usadas para estreitar relações e queimar etapas na construção da intimidade. No mundo real, porém, os comportamentos tendem a ser mais tímidos e distantes. Esse desequilíbrio, acredita Fernanda, ainda não é perceptível para as pessoas.
“Pode ser que, de fato, estejamos diante de um fenômeno em que a percepção da fotografia esteja sendo influenciada por uma idealização (de extroversão e intimidade) que não corresponde à experiência cotidiana das pessoas”.
Fonte: Exposição nas redes sociais está mudando a percepção da nudez»
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