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Menina, minha menina, 
carocinho de araçá, 
cante 
estude 
reze 
case 
faça esporte 
e até discurso, 
faça tudo o que quiser 
Menina! 
não esqueça que é mulher. 
Jacinta Passos  

Certamente, há pouquíssimas vidas tão inspiradoras como a de Jacinta Passos (1914-1973) no Brasil (e na América!), no período em que viveu. Nascida numa cidadezinha do interior da Bahia, Cruz das Almas, numa família abastada e profundamente católica, Jacinta vai aos poucos renegar todos os valores tradicionais, assumindo uma busca incessante por sua liberdade e a de todos. Dedicada à poesia e à escritura, torna-se uma importante jornalista e ativista social na década de 40 em Salvador, abandona o catolicismo e se aproxima de intelectuais comunistas como Jorge Amado. Jonalista, intelectual e poeta, Jacinta sabia que precisava se esforçar em dobro para enfrentar os valores conservadores, machistas e patriarcais tão vivos na década de 40. Casa-se em 1944 com James Amado (irmão mais novo de Jorge Amado) e filia-se ao PCB, carregando, desde então, mais um estigma, a de militante comunista. Chegou mesmo a ser candidata em 1945 a deputada, única mulher candidata no período, mas não foi eleita. 

Produziu uma pequena, mas fantástica obra literária que foi elogiada por Mário de Andrade e Antônio Candido. Com a ilegalidade do PCB, Jacinta passa para a militância clandestina, sempre usando de suas poesias para os trabalhos de propaganda políticas. Em 1951, encontrava-se no Rio de Janeiro quando sofre sua primeira crise nervosa com delírios, eram os sinais da esquizofrenia. Desse período em diante, já separada do marido, até o fim da sua vida viverá o preconceito múltiplo, por ser mulher, artista, comunista e, agora, "louca". Em diversos momentos, sua família justificou seus posicionamentos políticos radicais como "loucura" e foi mesmo presa em um sanatório por um prefeito que, incomodado com sua militância, alegava sua demência pela extremada virulência de suas palavras e posturas.

Seu tipo de esquizofrenia permitiria uma vida dita "comum", em sociedade, caso fosse tratada adequadamente. Mas foi internada e submetida à choques elétricos, injeções de insulina e tranquilizantes. Jacinta Passos sempre afirmava que era uma presa política e por isso não aceitava nenhum tipo de regalia nos manicômios. Durante os 7 anos que ficou internada, continuou escreveu regularmente, compondo à mão poemas, peças para teatro, radioteatro, aforismos, textos sobre teoria da arte, poesias e reflexões políticas (preencheu cerca de 3.348 páginas de caderno manuscritas no período, quase 560 páginas por ano, quase 16 páginas por dia). A lucidez de sua escrita, como atesta o poema abaixo, evidencia como não portava nenhum distúrbio grave que impedisse sua vida cotidiana. A sua "loucura" era ser "mulher, artista e comunista":  
Estudos de lógica: 
O sanatório é Bahia ou Bahia é um sanatório? 
A mulher está presa porque é comunista ou é comunista porque está 
presa?
O homem tem família porque tem propriedade privada ou 
tem propriedade privada porque tem família? 
Este homem faz 
continência porque trabalha ou 
trabalha para fazer continência? 
Os trabalhadores da arte trabalham para fazer figuração ou 
fazem figuração porque trabalham? 
Eu faço arte porque sou artista ou sou artista porque faço arte? 
(caderno 14, escrito em setembro ou outubro de 1967) 


O esquecimento (apagamento) da vida e obra de Jacinta corroboram o tratamento que como mulher e militante recebeu por toda sua vida. Mas, felizmente, sua luta e poesia aos poucos vão sendo resgatadas: em 2010, sua filha Janaína Amado, organizou uma bela antologia "Jacinta Passos, coração militante: obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica" e também um site: http://jacintapassos.com.br/. Alguns estudos também começam a aparecer. Para quem se interessar há um artigo de Rosângela Santos "Jacinta Passos, loucura ou marginalização?" e o livro "A história esquecida de Jacinta Passos" de Dalila Machado. Abaixo selecionei quatro poemas e um vídeo em que sua filha, Janaína, fala da vida de sua mãe. 

Que a memóriva viva da vida e luta de Jacinta Passos, enfrentando preconceitos familiares, sociais, políticos, possam inspirar tantas outras mulheres, e homens!  (por Jeff Vasques)


                Canção do amor livre

                Se me quiseres amar
                não despe somente a roupa.

                Eu digo: também a crosta
                feita de escamas de pedra
                e limo dentro de ti,
                pelo sangue recebida
                tecida
                de medo e ganância má.
                Ar de pântano diário
                nos pulmões.
                Raiz de gestos legais
                e limbo do homem só
                numa ilha.

                Eu digo: também a crosta
                essa que a classe gerou
                vil, tirânica, escamenta.

                Se me quiseres amar.

                Agora teu corpo é fruto.
                Peixe e pássaro, cabelos
                de fogo e cobre. Madeira
                e água deslizante, fuga
                ai rija
                cintura de potro bravo.
                Teu corpo.

                Relâmpago depois repouso
                sem memória, noturno.

Canção da liberdade

Eu só tenho a vida minha.
Eu sou pobre pobrezinha,
tão pobre como nasci,
não tenho nada no mundo,
tudo que tive, perdi.
Que vontade de cantar:
a vida vale por si.

        Nada eu tenho neste mundo,
        Sozinha!      
        Eu só tenho a vida minha.

Eu sou planta sem raiz
que o vento arrancou do chão,
já não quero o que já quis,
livre, livre o coração,
vou partir para outras terras,
nada mais eu quero ter,
só o gosto de viver:

        Nada eu tenho neste mundo,
        sozinha!
        Eu só tenho a vida minha.

Sem amor e sem saúde,
sem casa, nenhum limite,
sem tradição, sem dinheiro,
sou livre como a andorinha,
tem por pátria o mundo inteiro,
pelos céus cantando voa,
cantando que a vida é boa.

          Nada eu tenho neste mundo,
          Sozinha!
          Eu só tenho a vida minha.


Canção da partida
Bernadete é preta
é preta que nem tição.
Bernadete é pobre,
é pobre sem um tostão.

(...)

- Pelo sinal da pobreza!
- Pelo sinal de mulher!
- Pelo sinal!
da nossa cor!
Nós somos gente marcada
- ferro em brasa em boi zebu –
ninguém precisa dizer:
Bernadete, quem és tu?


Canção atual
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

Não quero a rosa do tempo aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero
as tranças de Julieta.

Este chão já comeu coisa
tanta que eu mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.

Muita cidade madura
e muito livro da lei.
Quanto deus caiu do céu
tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.

Coisas de nome trocado
– fome e guerra, amor e medo –

Tanta dor de solidão.

Muito segredo guardado
aqui dentro deste chão.
Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.

Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

Entrevista com Janaina Amado sobre sua mãe, Jacinta Passos:

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