Às 20h30 em ponto estava na praça da Barra Funda, portando o estranho relógio de bolso que seria meu convite para a aventura, conforme orientado pelo email recebido um dia antes.
Famílias se amontoavam aguardando a partida dos vários ônibus encostados nos arredores, todos com destino a um presídio próximo. Aquelas eram as famílias dos detentos, me explicava o sujeito de chapéu e blazer que desceu de uma kombi branca para me levar ao começo da experiência.
Junto comigo estava minha namorada – o convite dava direito a levar consigo outra pessoa, enfatizando que seria importante não ter medo de altura e estar com calçado próprio para aventura.
Dentro da kombi, recolheram nossos celulares e nos instruíram a sentar no chão do veículo – cuja traseira havia sido modificada e continha apenas um assento dos três originais – para não sermos vistos. A instrução curta não parecia conter dúvidas, apesar de nos gerar várias outras sobre o que viria a seguir.
Após alguns sacolejos e longos minutos, o carro parou e a porta se abriu. Uma mulher esguia vestida de preto, cabelo curto, com um walkie-talkie em mãos, fez com o dedo para ficarmos em silêncio e que a seguíssemos. Os dois homens de chapéu manobraram a kombi e partiram. À nossa esquerda, havia uma espécie de galpão industrial e um enorme esgoto à ceu aberto, que avançava até um grande muro, na base do qual havia uma grade de ferro impedindo a passagem.
À direita, um matagal bastante escuro e uma suspeita trilha de terra, pela qual nossa guia se apressava a deslocar antes que houvesse tempo para qualquer pergunta.
Em poucos minutos estávamos em mato fechado, descendo um pequeno morro em direção ao esgoto, com seu fedor invadindo nosso olfato. Parecia que o caminho era, quer meu senso de nojo gostasse ou não, por dentro dele. No último momento a guia se esgueirou por entre um pedaço de grade aberto e sumiu de nossa vista. Atravessar aquela passagem foi um voto de confiança no desconhecido.
Do outro lado, retomamos contato com a guia e precisamos sujar as mãos para subir o trecho a seguir, nos enfiando em uma mata ainda mais fechada, na qual avançamos por mais alguns minutos, para depois atravessarmos uma pesada portinhola de ferro que dava acesso a um amplo terreno baldio.
Aquilo não tinha cara de diversão e ninguém estava sorrindo. Estávamos atentos a cada passo dado e ao caminho, apenas.
Ela parou por alguns instantes, pouco antes de uma clareira, checando o movimento de guardas(?!) do outro lado do esgoto, cujas luzes de suas lanternas podíamos ver se mexendo ao longe. Nos deu um sinal para avançarmos com rapidez no momento exato e retomamos a trilha, que se tornava progressivamente mais fechada e perigosa, com buracos, espigões de ferro e o escuro engolindo as últimas nesgas de claridade.
Não sabia há quanto tempo caminhávamos, mas já suava bastante quando demos de cara com uma imensa árvore, na base da qual havia uma pequena escada de madeira. Subimos até alguns galhos mais acima e nos apoiamos em uma superfície de madeira instalada por alguém naquele local.
Em frente se colocava uma ponte feita de rede, como se usa na prática de arvorismo. Se estendia até o outro lado do esgoto, com cerca de vinte metros de comprimento e uns bons quinze metros acima do rio cheio de esgoto.
A ponte dependia do peso do corpo e de tranquilidade para se estabilizar. Ficar nervoso no meio da travessia não parecia nem um pouco aconselhável.
O pequeno sorriso da guia, como que dizendo “confia”, foi o sinal para respirar fundo e atravessar.
Do outro lado era possível escutar alguns sons. Escalamos uma outra escada rumo ao topo da árvore, escutando o que agora distinguimos como música, ganhar mais vida. Luzes emitidas por algum tipo de chama bamboleavam por entre os galhos e folhas. Ao fim da escada, uma mão nos puxa para o alto e somos recebidos por um homem de fraque, bigode, cartola e sorriso acolhedor.
Outras seis pessoas estão lá, nessa improvável casa na árvore, sem teto ou paredes.
Encarrapichada num canto, uma simpática dama tira o agradável som de acordeon que escutamos momentos antes. Há velas, uma decoração com objetos indecifráveis e bebida é servida à medida em que nos instalamos no banco improvisado.
Respiro fundo e tiro o casaco. Dou uma golada farta enquanto absorvo a paisagem e recobro o fôlego, sem ter a menor ideia de onde estamos.
Aliás, o que é mesmo que estava acontecendo?
* * *
N. D. Austin foi criado por seus pais em uma pequena ilha isolada no Alaska, distante centenas de milhas do centro urbano mais próximo. Ele acredita que seu trabalho é levar um pouco de amor para partes esquecidas das cidades, é criar experiências que possam tocar as pessoas.
Sentado à minha frente na Merceria São Pedro, ele era também o acolhedor sujeito de fraque a nos receber no alto da árvore e criador da experiência na qual eu estava poucos dias antes.
Trata-se do The Night Heron (é o nome em inglês para o pássaro “savacu”, comum no estados unidos), um projeto trangressivo de exploração urbana, intimidade e aventura.
Parte do que me manteve intrigado, no entanto, foi o modo como rigorosamente nada além do mínimo necessário nos foi explicado antes, durante e após. Atravessar a experiência, em certa medida, foi um ato de fé – em especial na pessoa que me permitiu estar lá.
O trajeto claramente envolvia riscos físicos, parecia flertar com a ilegalidade ao nos levar por zonas proibidas, não tinha marcas ou corporações por trás e com certeza não gerava dinheiro suficiente para se pagar – são um grupo de dez envolvidos e um mês de trabalho para tornar o percurso viável, e cerca de cem pessoas viveram a edição realizada em São Paulo.
Não é arte, não é negócio, não é entretenimento. O quê então?
Nathan diz que prefere apenas oferecer a experiência às pessoas e deixar que cada uma a interprete como achar melhor. “É claro que nos importamos com a cidade, com os rios, com a poluição, com a política e com o espaço urbano, mas não dizemos nada disso para as pessoas. Achamos melhor não condicionar as percepções.”, explica.
O intuito é deixar os convidados presentes no momento, não super-intepretando o contexto ao invés de estar ali, com os cinco sentidos.
* * *
Após uma hora de conversas e festa no alto da árvore, era chegado o fim.
O anfitrião nos perguntou se gostaríamos de oferecer a experiência a outra pessoa. Caso sim, pagaríamos duzentos reais para receber um pequeno relógio de bolso com um número inscrito à mão, ele seria o acesso de outro convidado junto a um acompanhante. Quem desejasse, não precisava pagar nada por ter estado ali.
Descemos, circundamos a base da árvore, caminhos até uma grade de frente pra rodovia, com um buraco aberto no local onde se juntava à parede. Alguns metros adiante, a kombi branca e os dois motoristas de chapéu igualmente branco e blazer estavam nos esperando. O anfitrião e sua equipe ficaram do lado de dentro da grade, se despedindo de nós com um breve aceno e um largo sorriso.
Os seis convidados entraram na kombi e fomos embora.
Uma impossibilidade urbana
Em minha opinião, o mais poderoso de todo o processo foi ser “sequestrado” sem saber a que me propunha, se eu deveria ir com minha identidade que busca se entreter, com a que busca aventura, com a que quer mostrar que é antenado e participa de algo supostamente raro ou, ainda, com aquela engajada politicamente no futuro da cidade.
Me senti torto e sem rumo e isso é uma coisa ótima. Normalmente se pergunta a alguém o quão divertido ou útil foi certa atividade, pra saber se vale ou não à pena irmos também.
The Night Heron me deu boa noite com uma gigantesca interrogação.
Foi um alivío ver como a experiência não se deu em mais um espaço cool, inovador e disruptivo de São Paulo, com as mesmas pessoas cool, inovadoras e disruptivas falando as mesmas coisas para o mesmo grupinho. Fomos para um esgoto fedido e terrenos abandonados. E os convidados seguintes dependeriam dos anteriores.
Questionei N. D. Austin se era um projeto feito pensando em exclusividade e fiquei feliz em escutar que “não, de modo algum, é acima de tudo sobre confiança e abertura. Você não iria em uma experiência desconhecida se não confiasse em quem o convidou antes. É disso que estamos falando aqui, pessoas se relacionando diretamente com outras pessoas.”
Em sua visão “turistas são chatos, eles ficam escutando outras pessoas dizendo a eles como é viver onde vivem e fazer o que fazem. Mas não é real (para os turistas), não é a vida deles.”. Pior, diz também que nós somos como turistas apáticos em nossas próprias cidades, andando pelos lugares sem nos importar com eles, tratando os locais públicos como se não pertencessem a ninguém.
Nassim Taleb, em seu livro “Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos“, nos apresenta o termo “turistificação“:
“Turistificação castra sistemas e organismos que apreciam a incerteza ao sugar deles toda a aleatoriedade enquanto gera a ilusão de benefício. (…) Esse é o meu termo para um aspecto da vida moderna que trata humanos como máquinas de lavar, com respostas mecânicas simplificadas e um manual do usuário detalhado.
É a remoção sistemática de incerteza e acaso das coisas, tentando torná-las cada vez mais previsíveis em seus menores detalhes. Tudo em prol do conforto, conveniência e eficiência.”
Esse fenômeno tem invadido todos os cantos de nossas vidas e faz com que os espaços urbanos se tornem locais transacionais, nos quais vamos basicamente para gastar dinheiro (nos entreter) ou ganhar dinheiro (trabalhar).
Ao enxergarmos a cidade de modo tão seco e utilitário, ela de fato se torna hostil e pouco acolhedora.
“Transformação na cidade não vai acontecer com alguém chegando e dizendo, “aqui está como resolver seus problemas de trânsito”, vai acontecer com as próprias pessoas mudando seu comportamento, o modo como vivem e se movimentam fisicamente dentro das cidades.”, N. D. Austin contextualiza.
“Mas é claro que não dá pra garantir transformação nenhuma. O ponto é: se a experiência puder ser intensa o suficiente para deixar uma marca com a qual a pessoa se relacione e questione como ela vê os espaços por onde caminha com outros olhos, meu dever estará feito.”, ele completa casualmente.
Encerramos a conversa, pagamos a conta e nos despedimos.
Obrigado, Nathan e a todos seus amigos sem os quais nada disso teria acontedio, por me levarem numa aventura em minha própria cidade.
Mecenas: Heineken | Open your City
Estamos acostumados a frequentar passivamente sempre os mesmos lugares, com as mesmas pessoas e as mesmas expectativas. Mas que tal trocar sua lente? A Heineken faz um convite para nós explorarmos um lugar que pode surpreender: a nossa cidade
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por Guilherme Nascimento Valadares
Fonte: E se a rua fosse um espaço de aventura e exploração?»
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