Até poucos anos não me via como um grande entusiasta de discussões políticas. Esse não era um assunto que me animava muito. Meu conhecimento sobre o tema não ia além do que acompanhava nos jornais em tom de novela com seus vilões, tramas, trapaças e armações.
Sabia o suficiente para sustentar uma conversa à espera do ônibus, cacoete da profissão. Política era algo distante, vago, que acontecia em algum lugar entre discursos e santinhos que costumava rabiscar em tempo de criança.
Como sociólogo e fotógrafo, meu interesse era pelo ritmo das ruas, pela confusão de sentidos, estilos e comportamentos que se apresenta diante de nós assim que pisamos fora de casa. Era ali onde a magia da vida cotidiana se apresentava. Era ali onde a política para mim se desajeitava justamente porque me parecia encastelada, descontextualizada, desconectada das vontades e anseios que frequentavam bares, esquinas e rodas de conversa de todo dia.
Richard Sennett, com seu “O declínio do homem público” (1977), explicou, em tom de catástrofe, o descompasso da política com as ruas que tanto me afastava e emudecia. Disse que minha falta de apetite para a coisa pública, cerrada em gabinetes por onde ecoam o baque seco dos carimbos, não era culpa minha, mas fruto de uma construção social que esvaziou de significado a vida pública e, com ela, nossa disposição para o debate.
Segundo o sociólogo, em meio ao rápido crescimento urbano do pós guerra, impulsionado pelo consumo e pautado por valores neoliberais, iniciamos um processo de desconstrução da esfera política e consequente isolamento social, uma vez que o Estado passou a ser regido por leis de mercado (PIB, Taxa de Juros, crescimento econômico) e as pessoas deixaram de se preocupar com o bem comum para se fecharem em vidas privadas em busca de sucesso profissional, financeiro e pessoal, que para muitos se tornaram sinônimos.
Ao nos voltarmos para questões particulares de nossas vidas, passamos a nos sentir mais confortáveis e seguros dentro de ambientes controlados, nos acostumamos a conviver apenas entre aqueles de mesmo status e começamos a ver no Outro (colegas de trabalho, vizinhos, pedintes no farol, essa gente diferenciada) concorrência ou ameaça. Fomos nos tornando autômatos, viciados na previsibilidade e linearidade que só abre espaço para o que é planejado, conhecido, esperado e mensurável, sem margem para risco, perda ou fracasso.
Deixamos as ruas, viramos as costas ao público e acabamos limitando nossa visão com muros, vidros escuros e ‘armários engravatados’ que nos dizem o que fazer em discurso carregado de gerúndios até quando andamos na calçada.
Adormecemos no “solitário confinamento de nosso ego,” como diria Bauman, enquanto a cidade era privatizada e o Estado inchava encharcado em negociatas. Declinamos como homens públicos.
Contudo, como não há inverno que não seja prelúdio de primavera, pouco mais de uma década depois do diagnóstico de Sennett que ainda explica muitas características socioeconômicas, culturais e políticas de hoje, nascia a “world wide web” e trazia consigo uma nova forma de pensar e perceber o mundo.
Diferente da “sociedade do espetáculo” que serviu de pano de fundo para nossa servidão e isolamento, os chamados Digital Natives nascem em um contexto onde ‘colaborar,’ ‘compartilhar,’ ‘mobilizar’ e ‘participar’ são tão importantes para definir suas identidades quanto ‘ter’ e ‘parecer’ eram para a geração retratada por Sennett.
Talvez não por coincidência, 21 anos após o surgimento da Web, a figura do manifestante tenha estampado a capa da Time magazine como personalidade do ano, ilustrando a ânsia dessa nova geração por romper com valores sociais pautados na competição, escassez e desigualdade que engendram crises sistêmicas e se mostram cada vez mais insustentáveis.
Clay Shirky (2008) resume bem o espírito de revolta que temos presenciado nos últimos anos quando afirma que “a revolução não acontece quando as pessoas adotam novas tecnologias, ela acontece quando as pessoas adotam novos comportamentos.” E são justamente estes novos comportamentos, essa nova maneira de agir no mundo que têm levado as pessoas de volta as ruas ao redor do globo na última década.
E foi assim, nas praças de Madri e Barcelona tomadas por jovens ‘Indignados’ que formavam grupos de trabalho para discutir aspectos políticos e sociais de uma Espanha em crise; em meio as barracas que ocupavam os arredores do centro financeiro de Londres e serviam de cenário para o discurso inflamado de intelectuais, como David Harvey e Manuel Castells, que criticavam a iniqüidade parida por um sistema político que privilegia o capital em detrimento do humano; e nas ruas de São Paulo que viram a Ponte Estaiada ser cruzada por milhares de jovens cheios de causas, cartazes e faixas que traziam em uníssono apenas insatisfação, é que aprendi a me sentir político.
Não porque tinha bandeiras, cores e afiliações, mas porque comungava dos sonhos e anseios de uma geração que fez ressurgir nas ruas o conceito de cidadão, de coletivo, de maioria, tão desbotados nos discursos marketeiros que moldam as políticas públicas e a corrida eleitoral.
É enroscado nas teias sociais que cobrem as ruas, suando do lado de fora de tantas prisões climatizadas, que posso afirmar que o que estamos presenciando hoje no Brasil não é algo pontual ou conjuntural, não tem só a ver com Copa, eleições ou vinte centavos. O grito que ecoa das ruas é a manifestação clara de um processo de mudança profunda dos valores sociais que forjarão as novas formas de fazer política, economia e cultura nas próximas décadas.
O que estamos vivenciando é o retorno do homem público, do homem coletivo, que chega para ocupar seu espaço, hackear o sistema, ser protagonista de sua própria vida. E não se enganem com equívocos, afobos ou embaraços porque errar para essa nova geração não é prejuízo, mas aprendizado.
Diante de tudo isso, não é de se espantar que o último livro de Richard Sennett se chame “Juntos, os rituais, os prazeres e a política da cooperação.” Mais uma vez ele se põe a retratar o espírito de uma época, e a época é política, como diz o poema de Wisława Szymborska, de quem empresto o título para este texto e que copio abaixo para não esquecermos que arte e política não são escolhas.
Fazem parte de nossa essência.
Os filhos da época (Wisława Szymborska)
Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas – minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra – político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.
* * *
Nota do editor: esse texto surgiu da rede do Sonho Brasileiro da Política, uma pesquisa sem fins lucrativos e suprapartidária que busca entender a relação do jovem brasileiro com a política. O estudo tem o intuito de dar luz a novas mentalidades, novas forma de participação que já estão acontecendo e de influenciar a sociedade a compreender e se relacionar com a política.
Todas as fotos utilizadas são do próprio Franklin.
por Franklin Lopes
Fonte: “Os filhos da época”»
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