por Barbara Falleiros
"Não, sai, sai daqui! Você não pode brincar com a gente! Você não vai brincar, você é ruivo!"
Do alto de seu metro e dez, mãos na cintura, a garotinha lança um olhar de desprezo por trás dos óculos de acrílico cor-de-rosa. Mundo em miniatura, o parquinho é, com a escola, o lugar do primeiro estágio de crueldade e discriminação.
A este olhar de desprezo sucede aquele de profunda tristeza da mãe, confessando à meia-voz seu sentimento de impotência. Sinto um nó na garganta quando me lembro destes dois olhares. O que deve fazer um adulto para proteger sua criança de qualquer tipo de preconceito e humiliação?
Little Miss Sunshine - A família dança junto! |
Niels Pickert me inspira um grande respeito. Este pai, ao se mudar com sua família de Berlim para uma cidade menor no sul da Alemanha, ofereceu todo o apoio para que seu filho de 5 anos não se sentisse ridicularizado no novo ambiente, no novo jardim da infância. O garotinho gosta de usar vestidos. O pai vestiu saias para acompanhá-lo.
Niels Pickert e seu filho combatendo os estereótipos de gênero |
"Sim, eu sou um daqueles pais que tentam criar seus filhos de maneira igual. Eu não sou um daqueles pais acadêmicos que divagam sobre a igualdade de gênero durante seus estudos e, depois, assim que a criança está em casa, se volta para o seu papel convencional: ele está se realizando na carreira professional enquanto sua mulher cuida do resto." (a reportagem em português, aqui)
Niels Pickert é feminista. Imagino aqui todos os machistas e masculinistas de plantão, exultantes e odiosos, pensando terem encontrado o exemplo perfeito do macho sem colhões, literalmente de saia, aviadando-se com seu filho ao invés de mostrar-lhe o que é ser homem! Estes nunca enxergarão o exemplo deste pai promovendo a tolerância, o carinho, o respeito e a aceitação.
Mas o que significa um menininho de vestido? Ou de fantasia de princesa, ou efeminado? Trata-se de uma fase? Quando crescer, ele vai ser homossexual, transsexual?
Pode ser. Como pode muito bem não ser. Como explica a médica americana Diane Ehrensaft, "algumas crianças exploram o gênero oposto e voltam. Outras, ao expressarem um desejo temporário de ser do outro sexo, podem estar apenas manifestando que são homossexuais. Mas muitas das que conheci expressavam claramente que se sentiam como sendo do gênero oposto." (fonte)
Muitas pessoas não sabem que existe uma diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. Tenho a impressão de que parte do preconceito resulta da confusão entre estes conceitos. A identidade de gênero diz respeito ao gênero com o qual a pessoa se identifica. No caso de um(a) transsexual, a pessoa sente que sua identidade - aquilo que ela é - não corresponde ao sexo biológico. Já a orientação sexual diz respeito aos gêneros pelos quais a pessoa sente atração física, romântica, emocional. Grosso modo, de um lado está o que você é, de outro com quem você deseja se envolver.
Nem sempre. O drama na vida de crianças transgênero é que, apesar de possuíram um órgão genital masculino ou feminino, toda sua existência aponta para o gênero oposto, como se tivessem nascido em um corpo errado: "De todas as coisas horríveis que poderiam ter acontecido comigo, por que isso?" E a única chance dessas crianças conseguirem enfrentar as dificuldades deste desacordo entre mente e corpo é com o apoio da família.
Riley e a entrevistadora Barbara Walters |
Um excelente documentário de 2007, My secret self, conta de maneira direta e extremamente comovente a história de três famílias com crianças transgênero. Quando Richard - hoje, após sua transição, uma garotinha chamada Riley - tinha 2 anos e meio, sua mãe encontrou-o na banheira tentando manejar um cortador de unhas com o intuito de cortar seu pênis. Aos 6 anos, Richard disse-lhe: "Mamãe, eu gostaria de não existir. (...) Se eu morresse, você ficaria triste, mas se eu nunca existisse, você nem saberia."
No site da Fundação Transkids Purple Rainbow, lemos: "Tentar ensinar uma criança transgênero a ser o oposto do que ela é [equivale a ensinar-lhe] como a sociedade espera que ela se comporte com base em sua genitália. Dizer a uma criança: 'Você é um menino, você tem pênis' (ou o oposto, para uma criança de sexo biológico feminino) só reforça os sentimentos de desconforto. Este 'ódio do corpo' muitas vezes leva a transtornos alimentares, automutilação e suicídio."
"Sinto pena dos pais que não conseguem fazer isso pelo seu filho, (...) expor seus sentimentos e dizer 'eu te amo, não importa se você é gay, lésbica ou transgênero'. Em que isso importa? É seu filho!", diz a mãe de Jess.
O que deve fazer um adulto para proteger sua criança do preconceito e da discriminação? Aceitá-la.
Postar um comentário